Demarcação das terras indígenas já!

Ter direito ao território é o ponto de partida para a verdadeira efetivação de todas as políticas públicas em prol dos povos indígenas, e o Ceará já entendeu isso

00:00 | Dez. 22, 2024

Por: O Povo
Jaiza Tremembé e Rodrigo Tremembé no Acampamento Terra Livre, em Brasília. Maio de 2023 (foto: IAGO BARRETO/DIVULGAÇÃO)

Em 1863, o então presidente da Província do Ceará, José Bento da Cunha Figueiredo, declarava ao governo imperial que a população indígena do Estado estava extinta. Apesar do massacre sofrido por essa população ao longo dos anos, essa afirmação segue longe de ser verdadeira. Atualmente, cerca de 16 povos indígenas residem no Ceará, e a luta pelos seus direitos está mais viva do que nunca.

“Para que você tente estabelecer o mínimo possível de igualdade no País, é necessário olhar para aqueles que foram historicamente colocados em situação de vulnerabilidade e dar um atendimento diferenciado, dar mais para quem tem menos. Essas políticas diferenciadas são resultado de derramamento de sangue e batalhas enfrentadas pelos nossos ancestrais e organizações indígenas regionais e nacionais”, defende o representante da Secretaria dos Povos Indígenas do Ceará (Sepince), Jorge Tabajara.

Criada em 2023, a pasta tem sido responsável por desenvolver ações fundamentais na manutenção dos direitos indígenas, desenvolvendo políticas transversais com outras secretarias e o movimento indígena do Estado. Uma dessas medidas é o empenho pela demarcação dos territórios indígenas, questão considerada por Jorge como o principal direito a ser conquistado.

Em novembro de 2023, o Estado assinou um acordo de cooperação técnica para futura demarcação de quatro terras indígenas do Ceará: Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz; Tapeba, em Caucaia; Pitaguary, em Pacatuba e Maracanaú; e Tremembé de Queimadas, em Acaraú. O acordo foi assinado por meio do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), vinculado à Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA), conjuntamente com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

“Isso é um avanço importantíssimo porque, a partir da conclusão da demarcação física desses territórios, nós já começamos a dialogar com o Governo Federal para que tão logo essas quatro terras sejam homologadas pelo presidente. A maior forma de proteger os direitos indígenas é demarcando territórios porque, quando se demarca, você abre portas para a implantação de diversas outras políticas de proteção”, aponta o secretário.

Nesse acordo de cooperação, o Estado contribui com equipes para a realização de levantamentos georreferenciados e identificação dos territórios, como explica o advogado e presidente da Comissão Especial de Defesa dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Estado do Ceará (OAB-CE), Alexandre Fonseca.

Segundo ele, as legislações nacional e estadual são favoráveis a esse grupo, mas ainda é necessário que os órgãos a frente do cumprimento dessas medidas estejam melhor estruturados para garantir, de fato, a execução da Constituição.

“Nós precisamos estar unidos na garantia dos direitos dos povos indígenas. A demarcação de terras não ameaça as propriedades consolidadas. Na verdade, garantir esse direito é garantir o nosso direito a uma sociedade com um meio ambiente equilibrado. Não há como se falar em sustentabilidade sem a garantia dos territórios dos povos indígenas do Brasil e do Ceará”, aponta.

Os direitos indígenas ao longo do tempo

De acordo com o advogado, presidente da Comissão Especial de Defesa dos Povos Indígenas da OAB-CE e coordenador jurídico da Sepince, Alexandre Fonseca, na América Latina, os primeiros registros sobre os direitos indígenas surgiram no século XIV, na Escola de Salamanca.

Na época, os teólogos jusnaturalistas Bartolomé de las Casas, Francisco de Vitória e Francisco Suaréz advogaram perante a Coroa portuguesa o reconhecimento de direitos desses povos, considerando necessária a conversão dos nativos ao catolicismo. Confira, a seguir, alguns marcos da história dos direitos indígenas no Brasil e no Ceará:

  • 1611 - Surge, no Brasil, o primeiro instrumento jurídico, através do Alvará Régio de 1º de abril, resguardando os direitos indígenas sobre a posse das terras, por esses povos serem os primeiros donos.
  • 1741 - No período colonial, a Bula “Immensa Pastorum”, dirigida aos bispos que estavam no Brasil e nas Índias Ocidentais, ditava que ninguém poderia possuir indígenas como escravos ou mantê-los em cativeiro.
  • 1831 - Lei nº 37.627, do Brasil Império, revoga as Cartas Régias que mandaram fazer guerra e pôr em servidão os índios.
  • OBSERVAÇÃO: Mesmo com a medida, os direitos dos nativos continuavam sob ataque. Neste período, os povos originários passam a ter suas vidas tuteladas pelo Estado, que os enxergava como incapazes. Com a Lei de Terras, em 1850, os indígenas são colocados como meros ocupantes, sem direitos sobre a propriedade. Historicamente, a Constituição brasileira de 1988 representa o grande divisor de águas nos direitos dos povos originários do País.
  • 1973 - Lei federal nº 6.001 dispõe sobre o Estatuto do Índio (terminologia antiga), com o propósito “de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”.
  • 1988 - Cria-se o capítulo VIII da Constituição Federal, exclusivamente direcionado aos direitos dos povos indígenas. Nele, o Art. 231 reconhece a esse grupo “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
  • 1989 - Artigo 287 da Constituição do Ceará prevê que o Estado “respeitará e fará respeitar os direitos, bens materiais, crenças, tradições e garantias reconhecidas aos índios pela Constituição da República”.
  • 1999 - Lei federal nº 9.836 institui o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.
  • 2004 - Decreto federal nº 5.051 promulga a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais.
  • 2007 - Decreto federal nº 6.177 promulga a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, assinada em Paris, em 20 de outubro de 2005.
  • 2008 - Lei federal nº 11.465, de 11 de março de 2008, inclui a obrigatoriedade da temática “História e Cultura AfroBrasileira e Indígena” no currículo oficial da rede de ensino.
  • 2009 - Decreto federal nº 6.861, de 27 de maio de 2009, dispõe sobre a Educação Escolar Indígena, define sua organização em territórios etnoeducacionais e dá outras providências.
  • 2012 - Lei federal nº 12.711 reserva, no mínimo 50%, das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas, que são preenchidas por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas.
  • 2020 - Lei estadual nº 17.165, de 2 de janeiro de 2020, reconhece a existência, contribuição e os
    direitos dos povos indígenas para a formação da sociedade cearense.
  • 2023 - É criado o Ministério dos Povos Indígenas, órgão da administração federal, em janeiro de 2023.
  • 2023 - Lei estadual n° 18.310, de 17 de fevereiro de 2023, altera a Lei n° 16.710, de 21 de dezembro de 2018, criando a Secretaria dos Povos Indígenas do Ceará (Sepince).
  • 2024 - Lei estadual nº 18.693, de 15 de fevereiro de 2024, institui o Conselho Estadual de Povos Indígenas (Cepin) cuja finalidade é viabilizar e assegurar a participação dos povos indígenas nos processos de deliberação, implementação e fiscalização de suas políticas públicas no Ceará.

O direito de ser indígena

A efetivação de políticas públicas para os povos indígenas passa pelo direito e necessidade de se autoafirmar como pessoa indígena. No entanto, em um processo histórico atravessado por um genocídio cultural e social, e levando em consideração as diferenças presentes em um País continental, o que é ser indígena?

Para o tesoureiro da Organização dos Professores Indígenas do Ceará (Oprince) e vice-coordenador da Associação dos Professores Indígenas Tapeba (Aproint), Cléber Tapeba, indígena é aquele que vive a sua cultura. De pele clara, cabelos encaracolados e olhos arredondados, ele foge dos estereótipos indígenas comumente apresentados na mídia.

“São 524 anos de extermínio. Todo esse apagamento histórico e secular faz com que a gente tenha uma mistura de genes. Esse fenótipo mais conhecido da população indígena, cabelo lisinho, olho puxado, pele escurecida, é mais comum para quem está no norte do País, onde demorou um pouco mais para que a invasão chegasse. Ser indígena não é só uma característica fenotípica, mas sim um pertencimento”, declara.

Na visão do advogado Alexandre Fonseca, se desprender desses preconceitos é fundamental para garantir, efetivamente, os direitos dos povos originários. “O nosso País é continental, então o indígena da Amazônia não vai ser parecido com o cearense. Tivemos colonização tanto holandesa como francesa em vários locais. Se você pegar a população serrana, ela vai ser diferente da litorânea. Há, também, populações indígenas dentro de quilombos”, indica.

Segundo ele, para o cumprimento de cotas, por exemplo, é garantido ao indivíduo, nacionalmente, o direito de se autodeclarar como indígena. No entanto, esse reconhecimento deve vir acompanhado da compreensão dos costumes, tradições e ligação étnica com a cultura indicada.

“Você precisa ter uma raiz tradicional que lhe traz essa garantia de que você realmente é indígena. É comum que as pessoas solicitem uma declaração das lideranças dos povos. Geralmente se exige três assinaturas, mas cada povo se organiza da forma como ele se entende”, explica

O problema do marco temporal 

O marco temporal é uma tese jurídica que define que os povos indígenas só podem reivindicar terras que estivessem ocupando fisicamente ou que estivessem em disputa judicial ou conflito fundiário até o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Levando em consideração que a ideia ignora as remoções forçadas desses grupos ao longo da história, em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou essa tese. No entanto, em outubro do mesmo ano, o Congresso aprovou a Lei nº 14.701, que incorpora o marco temporal. Atualmente, a constitucionalidade dessa medida está pendente de julgamento no STF, já que contraria a decisão do tribunal.

Povos indígenas no Ceará

Tapeba;
Anacé;
Jenipapo-Kanindé;
Tremembé;
Pitaguary;
Potyguara;
Tabajara;
Tubiba-Tapuia;
Gavião;
Tupinambá;
Kariri;
Kalabaça;
Tapuya Kariri;
Kanindé;
Karão Jaguaribara;
Issú-Kariri.