Empregabilidade além do preconceito
Incluídos no mercado de trabalho, PcDs entregam mais que produtividade – provam valor na cultura das organizações
00:00 | Nov. 07, 2023
Se o desemprego é uma situação delicada por si, para as pessoas com deficiência a odisseia em busca da empregabilidade começa já no processo seletivo. “eu sempre encontrei espaço no serviço público, com muito estudo, porque as empresas privadas não nos dão oportunidades. O gargalo é o ingresso nas empresas”.
O relato é de Ana Kristia, que teve a vida totalmente transformada quando precisou enfrentar os desafios da cidade grande. Há quase duas décadas, a então jovem de 17 anos deixava Quixeramobim, cidade onde nasceu e que a ensinou o significado de liberdade diante dos desafios da cegueira, e desembarcou em Fortaleza para estudar psicologia.
Com o caos da capital, veio o sentimento de aprisionamento. Ele trouxe, por sua vez, um estalo que acontece naqueles momentos raros, que revelam profunda consciência de si. “Eu sou uma pessoa com deficiência!”, ela percebeu. “Por ser uma pessoa funcional, que estudava, trabalhava, eu não me entendia como PcD. Quando cheguei em Fortaleza, tudo mudou. Reconhecer isso é uma posição política também”.
A partir de então, Kristia passou a entender sua condição física como parte integrante de sua identidade, que se transformou também em luta coletiva.
A deficiência começou ainda na infância, com a descoberta de um glaucoma, e
foi se agravando com o passar do tempo. “Na época da escola, era chamada de visão subnormal, hoje a nomenclatura mudou, é baixa visão. Eu conseguia contornar a dificuldade de enxergar sentando mais à frente na sala de aula, mas, à medida que o tempo passava, eu ia enxergando cada vez menos”, lembra Kristia.
Até chegar ao mercado de trabalho formal, a trajetória da mulher de 35 anos foi marcada por muito estudo e apoio de familiares e colegas. “educação sempre foi algo fundamental. É o caminho que eu tinha para entrar no mercado de trabalho, que não é inclusivo”.
Hoje servidora pública concursada do Ministério Público da União (MPU), sua rotina de trabalho, em regime de home office, é comum à de muitos outros empregados. “Eu tenho a mesma capacidade de qualquer pessoa sem deficiência, a diferença é que eu vou demorar um pouco mais para aprender alguns processos. Eu sempre peço para que tenham paciência no início. Hoje, eu faço em cinco minutos uma tarefa que, no início, executava em meia hora”, conta ela, que não quer ser vista como heroína. Fortaleza foi desafiadora. Passados 18 anos desde sua chegada, as maiores barreiras que a moradora do bairro Parangaba encontra na cidade ainda são as mesmas.
De calçadas irregulares ou inexistentes a muito desrespeito no trânsito, com condutores ignorando semáforos, sinais sonoros e faixas de pedestres – uma estrutura física e comportamental que desrespeita, em última instância, a sua existência no mundo. “Eu tenho deficiência visual, mas os cegos são os outros, que não me enxergam”, diz.
Essa invisibilidade se reflete na constante ausência de lugar para pessoas como ela no mercado de trabalho. Ana Kristia é cega, mas é também mulher, esposa e mãe de duas filhas, e isso vale ser destacado. carrega na fala, sempre serena, o simbolismo da chamada “interseccionalidade” de fatores sociais, cuja soma resulta na definição de si.
“Eu não sou apenas cega”, reitera ela, que constantemente se vê no papel de cuidar das filhas em seu espaço de trabalho. A exclusão para pessoas com deficiência no mercado cearense é grande, mas é ainda maior se essa pessoa for uma mulher.
“Papéis sociais são o tempo todo esperados de pessoas adultas. É até mesmo cobrado que uma mulher adulta se case, trabalhe e tenha filhos, como se fosse um roteiro a ser cumprido. Mas, se essa mulher tiver deficiência, é como se essas expectativas fossem zeradas. Ah, porque é cega, então pode. Eu trabalho para mudar isso. Eu trabalho porque eu me sinto bem, porque fico com a autoestima lá em cima!”, conta. “É importante falar das barreiras, mas também sobre como derrubá-las”, encerra.