César Lattes: conheça a trajetória do brasileiro ignorado pelo Nobel

Responsável pela descoberta que tornou possível o estudo da física de partículas elementares, Lattes não recebeu o reconhecimento do Nobel; entenda o motivo

Para acadêmicos em universidades, “Lattes” é um nome conhecido. Afinal, a plataforma é um dos meios mais amplamente utilizados entre pesquisadores, reunindo currículos de brasileiros e estrangeiros que atuam nos estudos científicos do País.

De nomes que se recusaram a receber o Nobel aos fatos mais polêmicos; SAIBA TUDO sobre a condecoração sueca

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No entanto, o que poucos sabem é que o programa foi nomeado em homenagem ao cientista curitibano César Mansueto Giulio Lattes. O físico tornou-se conhecido por descobrir a partícula subatômica méson pi (píon), que rendeu o Prêmio Nobel de Física ao norte-americano Cecil Frank Powell, em 1995. Até hoje, tal condecoração gera controvérsias.

Abaixo, confira mais detalhes sobre a trajetória do cientista brasileiro.

Quem foi César Lattes?

Filho de imigrantes italianos, César nasceu em Curitiba, no dia 11 de julho de 1924. Seus pais, Giuseppe Lattes e Carolina Maroni Lattes, se conheceram no período em que Giuseppe lutava na Primeira Guerra Mundial e precisou ir à Itália para servir ao país.

Após se casarem, Giuseppe e Carolina retornaram ao Brasil em 1921 e César estudou na Escola Americana. Com a Revolução de 1930, a família passou seis meses na Itália. Seu pai era gerente do Banco Francês e Italiano, onde César conheceu o cientista Gleb Wataghin, que mais tarde seria seu mentor.

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Lattes foi um dos mais ilustres físicos do Brasil e seu trabalho foi fundamental para o desenvolvimento da física atômica. Foi também um dos principais responsáveis pela criação, em 1951, do atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, em 1952.

O curitibano é tido até hoje como o mais brilhante dos jovens físicos daquela geração, que contou com nomes como Mário Schenberg (considerado o maior físico teórico do Brasil) e José Leite Lopes (responsável pela primeira predição do bóson Z).

César Lattes: qual a importância da sua descoberta?

A descoberta do méson pi foi um passo fundamental na compreensão do mundo sub-atômico. Ao longo do século XX, as idéias sobre a matéria foram se tornando gradualmente mais complexas e a contribuição de Lattes respondeu à indagação de que seria necessário supor um novo tipo de forças nucleares, mais fortes do que a repulsão elétrica, para manter a coesão do núcleo de partículas sub-atômicas.

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Isso porque o núcleo contém partículas de carga positiva (prótons) e outras sem carga elétrica (nêutrons). O que prende os prótons e os nêutrons uns aos outros para formar o núcleo? Eles não podem se atrair eletricamente – pelo contrário, os prótons se repelem uns aos outros. As forças gravitacionais são muito menores do que as forças elétricas repulsivas.

Abaixo, entenda o cenário teórico ao qual César Lattes conseguiu atribuir um surpreendente direcionamento.

A problemática de uma partícula ainda desconhecida

Em 1935, Hideki Yukawam, um teórico físico japonês, propôs uma teoria para explicar as forças nucleares, ou seja, as forças que formam o núcleo das matérias. Ele sugeriu a existência de uma partícula ainda desconhecida, com uma massa cerca de 200 vezes maior do que a do elétron, que poderia ser emitida e absorvida por prótons e nêutrons.

A troca dessa partícula entre os constituintes do núcleo atômico produziria uma atração entre eles, de curto alcance, que poderia explicar a estabilidade nuclear. Por ter uma massa intermediária entre a do elétron e a do próton, recebeu o nome de “méson”. Essas partículas só poderiam existir durante um tempo muito curto e se desintegrariam fora do núcleo atômico depois de apenas um bilionésimo de segundo.

Em 1937-38, Carl D. Anderson e Seth H. Neddermeyer encontraram na “radiação cósmica”, que continuamente atinge a Terra, os sinais de algo que parecia ser o méson de Yukawa: tinha uma massa adequada e se desintegrava do modo previsto.

Durante quase dez anos, parecia que tudo se encaixava e que se dispunha de uma boa teoria sobre a constituição da matéria. Em 1947, no entanto, tal tranquilidade foi perturbada.

Descobriu-se que o méson de Anderson e Neddermeyer não tinha o comportamento previsto. Para poderem explicar as forças nucleares, os mésons deveriam ser fortemente absorvidos por prótons e nêutrons.

No entanto, um grupo de pesquisadores italianos (Marcello Conversi, Ettore Pancini e Oreste Piccioni) observou que os mésons encontrados na radiação cósmica podiam atravessar centenas de núcleos atômicos sem sofrer qualquer alteração.

Eles tinham uma interação muito fraca com prótons e nêutrons, ao contrário do que se esperava. Alguma coisa estava errada. E é aí que Lattes entra em ação.

A contribuição de César Lattes

Em 1946, a equipe de pesquisadores de Bristol (Inglaterra), da qual Lattes fazia parte, sob a direção de Cecil F. Powell, estava estudando os traços produzidos por reações nucleares em certas chapas fotográficas especiais, mais grossas e mais sensíveis, chamadas “emulsões nucleares”.

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Pela análise dos rastros lá deixados por prótons e outras partículas carregadas, é possível determinar a sua energia e massa. Beppo Occhialini e César Lattes analisaram algumas emulsões de um novo tipo, que haviam sido colocadas no alto de uma montanha (o Pic du Midi).

Ao revelar e analisar as emulsões, observaram grande número de traços deixados por partículas que interpretaram inicialmente como sendo os mésons já conhecidos.

Para obter maior número de dados, Lattes viajou para a Bolívia e colocou várias emulsões nucleares no alto do Monte Chacaltaya, a uma altitude de 5.500 metros. A ideia era “fotografar” a trajetória das partículas oriundas dos raios cósmicos por meio de chapas fotográficas de emulsão nuclear, método criado por Cecil Frank Powell.

Nelas, foi possível encontrar cerca de 30 rastros de mésons duplos. Estudando esses traços, foi possível determinar a massa dos mésons e perceber que havia dois tipos de partículas, com massas diferentes.

Antes da viagem, Lattes pediu à Kodak que acrescentasse mais boro à composição das placas de emulsão nuclear. Graças a isso, a revelação das chapas fotográficas mostrou o que seria identificado como uma nova partícula atômica, o méson pi (ou píon).

Os estudos mostraram que existia um tipo de méson que era cerca de 30% a 40% mais pesado do que o outro. Ele se desintegrava e produzia o méson mais leve. A partícula secundária era a que já era conhecida pelos estudos de Anderson e Neddermeyer e passou a ser chamada de méson mi (atualmente, é chamado de múon).

O méson primário, mais pesado, era algo novo, desconhecido. Foi denominado méson pi e sua identificação foi anunciada em outubro de 1947. Estudos posteriores mostraram que ele tinha uma forte interação com o núcleo atômico, possuindo as características exigidas pela teoria de Yukawa. Haviam sido encontradas as partículas responsáveis pelas forças nucleares.

A descoberta foi descrita por Lattes no artigo “Processes involving charged mesons”, publicado pela revista Nature em 1947. O texto é coassinado por seus colegas de laboratório, Powell, Occhialini e Hugh Muirhead. A façanha marcou o início de um novo campo de estudos, a física das partículas elementares.

César Lattes: por que ele não foi laureado pelo Nobel?

Três anos depois, em 1950, o comitê do Nobel concedeu o prêmio de Física a Cecil Frank Powell pelo desenvolvimento do método fotográfico para estudo de processos nucleares e por achados relacionados aos mésons. O motivo de o prêmio não ter ido para o brasileiro foi a política interna do Nobel. Até 1960, a regra era premiar apenas o chefe da equipe responsável pela descoberta.

Mas a injustiça não apagou o papel de Lattes na história da ciência. Pela descoberta do méson pi aos 27 anos de idade, o brasileiro até hoje é lembrado por mudar os rumos da física, dando espaço para o surgimento de um novo campo de estudos, e pelos seus esforços em desenvolver a educação e a ciência de ponta no Brasil. Lattes morreu em 2005, aos 80 anos, em Campinas (SP).

Em 2001, durante uma entrevista para o Jornal da Unicamp, Lattes mencionou o fato de não ter ganhado o Nobel de Física:

"Sabe por que eu não ganhei o prêmio Nobel? Em Chacaltaya, quando descobrimos o méson-pi, se publicou: Lattes, Occhialini e Powell. E o Powell, malandro, pegou o prêmio Nobel pra ele. Occhialini e eu entramos pelo cano”, disse. “Ele era mais conhecido, tinha o trabalho da produção de pósitrons, em 1933.”

Depois desse momento, o brasileiro foi para a Universidade da Califórnia, onde foi inaugurado o sincrociclotron, em 1946. Foi lá que Lattes e Eugene Garden detectaram o méson artificial, alimentando a presunção de retirar do empirismo todas as pesquisas que se relacionassem com a libertação da energia nuclear.

“Sabe por que não nos deram o Nobel? Garden estava com beriliose, por ter trabalhado na bomba atômica durante a Guerra, e o berílio tira a elasticidade dos pulmões. Morreu pouco depois e não se dá o prêmio Nobel para morto. Me tungaram duas vezes”, concluiu Lattes.

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