Cacique Raoni mora em Mato Grosso e não há evidências de que ele tenha imóvel em Paris
Os ataques contra o líder indígena foram feitos em meio a críticas disparadas pelo então presidente Jair Bolsonaro, ainda em 2019
11:53 | Ago. 07, 2023
É enganoso o post que cita que o cacique Raoni tem um apartamento em Paris. A desinformação foi publicada como reação a críticas feitas por ele à política indigenista de Jair Bolsonaro (PL) e é disseminada desde o final de 2019, quando um vídeo sobre venda de ouro em Gana foi distorcido para acusar Raoni de negociar terras por meio de uma ONG para construir mansão. Um neto do cacique e integrante da Fundação Raoni disse que o indígena de mais de 90 anos vive em Mato Grosso. Não há evidências de que ele tenha imóvel em Paris. Atualmente, Raoni mora em uma aldeia e se desloca até imóvel alugado, em Peixoto de Azevedo (MT), quando necessita cumprir rotina médica para cuidar da saúde debilitada.
Conteúdo investigado: Mensagem de uma apoiadora de Jair Bolsonaro reagindo a críticas de Raoni à política ambiental do ex-presidente com a frase “Disse o índio militante que tem apartamento em Paris”.
Onde foi publicado: Na rede social X (antigo Twitter).
Conclusão do Comprova: É enganoso post que acusa o cacique Raoni de ser proprietário de apartamento em Paris. A publicação reage a uma notícia com críticas de Raoni à política indigenista de Jair Bolsonaro (PL) e reforça uma sequência de boatos sobre o assunto publicadas desde 2019 na internet.
O Comprova não conseguiu realizar buscas em órgãos franceses apenas com o nome de Raoni como proprietário de imóvel.
Questionado sobre a publicação, Beptuk Hokrit Metuktire, um dos netos do líder indígena, demonstrou indignação ao acessar o post. “Essa gente não tem noção, e não tem vergonha na cara sobre as mentiras que eles inventam”, reclamou.
Hokrit afirma que o avô mora em Mato Grosso, não tem imóvel na Europa nem nunca deu declaração sobre isso. Ele diz que, atualmente, a saúde de Raoni atravessa momentos ruins e que, por conta disso, necessita se deslocar da aldeia até o município de Peixoto de Azevedo. Nesta cidade, eles alugam imóvel para que o cacique se hospede e cumpra bateria de exames e tratamento.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 4 de agosto, a publicação tinha 73,2 mil visualizações, 3,7 mil curtidas e 543 compartilhamentos.
Como verificamos: Usamos o Google para checar reportagens publicadas sobre o assunto. Também pesquisamos sites nacionais e internacionais relacionados ao tema. Em redes sociais, buscamos parentes do líder indígena e conseguimos contato com um de seus netos.
Boato circula desde 2019
A alegação de que Raoni seria dono de um imóvel em Paris começou a ganhar força na internet em 2019. Vídeo de uma inspeção de compra de ouro em Gana passou a circular nas redes sociais como se mostrasse o líder indígena negociando terras da Amazônia por meio de ONGs da região. Alguns posts alegavam ainda que o objetivo seria a compra de uma mansão na capital francesa.
Na época, agências de checagem como Estadão Verifica e Lupa já mostravam que a suposta ligação de Raoni à filmagem em Gana era explorada em peças de desinformação.
O Les Observateurs, serviço de checagem do France 24, descobriu que um dos homens que aparece nas imagens é o advogado italiano René Verrecchia. Ao portal francês, Verrecchia afirmou que “tudo isso foi uma deturpação grosseira de uma inspeção executada durante uma venda de metal” em Acra, a capital de Gana, que acabou não recomendada aos potenciais compradores.
Os ataques contra o líder indígena foram feitos em meio a críticas disparadas pelo então presidente Jair Bolsonaro, que dizia a seus apoiadores que o representante kayapó teria sido “cooptado por chefes de Estado”. Raoni criticou em diversos momentos a política ambiental de Bolsonaro e havia encontrado, poucos dias antes, o presidente da França, Emmanuel Macron, em uma campanha contra o desmatamento.
Em 4 de junho deste ano, Raoni esteve mais uma vez na França e se encontrou novamente com Macron. Ele também concedeu uma entrevista, para o jornal O Globo, em que acusa Bolsonaro de incentivar o ódio contra os indígenas. Diante desse cenário é que o boato voltou a circular entre bolsonaristas.
Fato é que a própria entrevista de O Globo mencionada na publicação checada pelo Comprova mostra que Raoni Metuktire reside em uma aldeia no Mato Grosso. Um vídeo foi gravado na aldeia Piaraçu, localizada na Terra Indígena Capoto-Jarina, a quase mil quilômetros de Cuiabá — onde centenas de lideranças indígenas se reuniram em um “Chamado do Raoni” para fortalecer a luta indígena, como na posição contrária à tese do marco temporal de demarcação de terras.
A localização exata da aldeia aparece em um mapa produzido por jornalistas do G1.
Quem é o cacique Raoni
O cacique Kayapó Raoni tem o nome indígena Ropni Metyktire e não se sabe a data exata em que nasceu. O instituto com seu nome informa que provavelmente ele tenha nascido no início da década de 1930, em uma antiga aldeia Mebêngôkre (Kayapó) denominada Kraimopry-yaka, no nordeste do estado de Mato Grosso.
Ao longo da vida, ele foi protagonista de diversas lutas em favor dos povos indígenas e da Amazônia, passando a ser reconhecido internacionalmente como liderança e porta-voz da preservação do meio ambiente.
Desde jovem, sempre se envolveu em causas para defesa do seu povo. Por volta de 1954, ele conheceu os irmãos Villas-Boas – foi quando passou a ser o principal interlocutor entre os kayapós e o mundo.
O encontro com o cantor Sting em 1987 ampliou sua notoriedade internacional. O indígena também teve atuação na Assembleia Constituinte em 1987 e 1988, quando colaborou para a inclusão de direitos fundamentais dos povos indígenas na Constituição Federal de 1988.
Na década de 1990 e a partir do ano 2000, Raoni realizou inúmeras viagens pelo mundo e conquistou o apoio de importantes lideranças internacionais. Em 2019, início do governo Bolsonaro, Raoni voltou a pedir apoio pelos direitos dos povos indígenas e pela defesa da Amazônia. O cacique alertou o mundo sobre o crescimento do desmatamento e as ameaças do agronegócio, garimpos e madeireiras que exploram a floresta.
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova não conseguiu contato com o responsável pela publicação. A conta no X não permite o envio de mensagens diretas e informa apenas o seu primeiro nome.
O que podemos aprender com esta verificação: Representantes indígenas e ambientalistas costumam ser alvos frequentes de desinformação, como forma de rebater suas críticas sobre a política de combate aos crimes ambientais e outros fatores que prejudicam os povos indígenas e seus territórios. O post, no entanto, faz uma acusação sem fornecer qualquer detalhe ou prova de que aquilo seja verdade. Nesse caso, o leitor deve se perguntar se aquela fonte de informação é confiável e pesquisar mais sobre o assunto. Uma simples pesquisa no Google seria suficiente para encontrar verificações jornalísticas de agências independentes desmentindo o boato.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Em 2019, boatos semelhantes foram desmentidos por Estadão Verifica, Lupa e Boatos.org. Recentemente, o Comprova também apurou vídeo que enganava ao dizer que Lula vendeu Amazônia a mineradora em troca de dinheiro para o Fundo Amazônia. Também foi apurado conteúdo sobre retirada de produtores de arroz de terras indígenas que não ocorreu por determinação de Lula.
Investigado por: Estadão e Norte de Notícias
Verificado por: Folha, UOL, O Popular, Grupo Sinos, Correio Brasiliense e Plural