É falso que vacina australiana contra coronavírus tenha infectado pessoas com HIV; voluntários tiveram falso-positivo
Resultado ocorreu porque a pesquisa feita pela empresa CSL em parceria com a Universidade de Queensland utilizou uma proteína do vírus da Aids em suas pesquisas. Ao contrário do que diz o homem no vídeo verificado, essa técnica não pode contaminar uma pessoa com o HIV
17:33 | Dez. 23, 2020
É falso que os voluntários que passaram por testes de uma vacina contra o coronavírus na Austrália tenham contraído HIV, como afirma um homem em um vídeo compartilhado no domingo (20) em um canal no YouTube. Alguns dos voluntários que participaram da fase 1 de testes da vacina produzida em parceria entre a empresa de biotecnologia CSL e a Universidade de Queensland registraram falso-positivos para HIV, mas isso não significa que eles foram infectados com a doença.
Segundo os desenvolvedores, a presença de anticorpos para HIV já era esperada e os voluntários estavam cientes disso, uma vez que uma proteína presente no vírus causador da Aids foi utilizada na produção da vacina contra o coronavírus. Em alguns voluntários, a quantidade de anticorpos foi maior do que a esperada, o que interferiu nos exames. Nenhum dos voluntários, no entanto, foi contaminado com o HIV.
Também não é verdade que o resultado tenha acometido todas as pessoas que tomaram a vacina no país, como afirma o homem. Após falso-positivos em alguns dos 216 voluntários que receberam a vacina australiana, os testes foram suspensos a fim de evitar que uma eventual aplicação em massa gerasse problemas de ansiedade por conta do temor por uma contaminação por HIV.
Como verificamos?
Primeiro, buscamos as reportagens citadas pelo homem no vídeo que, supostamente, dariam suporte às afirmações de que os voluntários que receberam a vacina australiana testaram positivo para HIV. Foram encontradas publicações do CanalTech, revista Exame e, ainda, da CNN (versões em português e em inglês), mas nenhuma delas afirmava que os pacientes tiveram resultados positivos para HIV, e sim falso-positivos.
Em seguida, acessamos entrevistas de especialistas em canais de TV australianos que explicassem como se deram os resultados falso-positivos em alguns dos voluntários. Também acessamos a nota oficial divulgada no dia 11 de dezembro pelos desenvolvedores da vacina australiana — a empresa de biotecnologia CSL e a Universidade de Queensland — sobre os resultados obtidos.
Procuramos por registros das declarações feitas pelo virologista francês Luc Montagnier, citado no vídeo, sobre a origem do coronavírus e a repercussão que sua teoria teve na comunidade científica. Por fim, buscamos informações sobre o autor da gravação e o canal em que ele foi postado no Youtube. Contatamos a empresa Hidrogênio Global e o autor do vídeo, mas até o fechamento desta verificação eles não retornaram.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 22 de dezembro de 2020.
Verificação
Falso-positivos
Alguns dos 216 pacientes que participaram da fase 1 de testes para a vacina desenvolvida numa parceria entre a empresa de biotecnologia CSL e a Universidade de Queensland, na Austrália, apresentaram resultados falso-positivos para HIV. Os resultados foram comunicados no dia 11 de dezembro pelos desenvolvedores do imunizante, que afirmaram que “não há possibilidade de a vacina causar infecção e os testes de acompanhamento de rotina confirmaram que não há presença do vírus HIV”.
Apesar disso, os testes com o imunizante foram, de fato, suspensos diante do temor de que uma eventual aplicação da vacina causasse problemas de ansiedade e receio de contaminação pelo HIV. O primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, informou que 51 milhões de doses seriam compradas do consórcio, mas que agora elas serão divididas entre a AstraZeneca e Novavax, que também desenvolvem vacinas contra o SARS-CoV-2.
O homem que aparece no vídeo verificado mostra imagens de reportagens sobre os falso-positivos para HIV na Austrália -— na tela aparecem textos publicados pelo CanalTech e pela revista Exame — e usa o argumento de que, pelo fato de o assunto ter sido noticiado pela grande mídia, mais gente irá acreditar nele. No entanto, nenhuma das matérias utilizadas por ele como fonte fala em casos positivos para HIV — como ele afirma —, e sim em falso-positivos. As publicações também não falam que os resultados acometeram todas as pessoas que tomaram a vacina em teste, diferente do que diz o título do vídeo postado.
Proteína do vírus HIV
Na nota divulgada no dia 11 de dezembro, os desenvolvedores do imunizante australiano explicam os falso-positivos para HIV: “Os dados da fase 1 também mostraram a geração de anticorpos direcionados a fragmentos de uma proteína (gp41), componente utilizado para estabilizar a vacina. Os participantes do ensaio foram totalmente informados da possibilidade de uma resposta imunológica parcial a este componente, mas foi inesperado que os níveis induzidos interferissem com alguns testes de HIV”.
Ou seja, os cientistas já esperam que a proteína, presente no vírus HIV e utilizada no desenvolvimento do imunizante, fizesse com que o sistema imunológico criasse anticorpos para combater o vírus, mesmo ele não existindo. O que eles não esperavam eram níveis tão elevados de anticorpos que gerassem interferência em exames de HIV.
A professora Sarah Palmer, especialista em estudos do HIV/Aids do Instituto Westmead de Pesquisas Médicas, explicou para afiliada australiana da rede de TV SkyNews que o problema foi causado porque os cientistas da Universidade de Queensland usaram um segmento do vírus HIV como molécula “clamp”, ou seja, para estabilizar a proteína do coronavírus na vacina experimental e torná-la um alvo “atraente” para o sistema imunológico do ser humano.
A tecnologia é considerada inovadora pela professora Palmer, mas não deu certo: o sistema imunológico dos voluntários realmente gerou uma boa resposta ao coronavírus, que provoca a covid-19, mas também ao próprio HIV, fazendo com que os testes de HIV nos voluntários desse positivo para Aids.
“Infelizmente, como esse grampo molecular foi feito de uma proteína do HIV, não só o corpo respondeu desenvolvendo anticorpos para a proteína spike do coronavírus, o que é muito positivo, mas também desenvolveu anticorpos para a proteína do HIV. Isso fez com que as pessoas tivessem testes de HIV positivos, embora não estivessem infectadas com o HIV”, explicou a cientista.
Os testes, então, foram suspensos. Para os desenvolvedores, se ela fosse amplamente aplicada na população, poderia causar um problema na saúde pública do país pelo alto índice de resultados falso-positivos para HIV.
A Austrália descartou o uso desse imunizante, que já estava na fase 3 dos testes. A Universidade de Queensland deverá reiniciar a pesquisa e a vacina poderá vir a ser usada “no futuro”. O próprio Instituto Westmead está desenvolvendo uma vacina para a covid-19 a ser usada especificamente em idosos.
Coronavac, China e a origem do vírus
O homem que aparece no vídeo afirma que não apenas a vacina “que vem da China” pode infectar as pessoas com o HIV, mas todas as outras. Para isso, usa o argumento do virologista francês Luc Montagnier, vencedor do Nobel de Medicina em 2008 por ter descoberto o vírus HIV na década de 1980, de que o coronavírus teria sido fabricado em laboratório durante uma possível tentativa de descoberta de vacina contra a Aids. No entanto, as melhores evidências científicas disponíveis até o momento indicam que o SARS-CoV-2 tem origem natural.
As afirmações do homem no vídeo verificado não têm sustentação. Em primeiro lugar, porque o caso relatado por ele diz respeito a uma vacina em testes na Austrália, que nada tem a ver com a China. A Coronavac, uma das vacinas desenvolvidas na China e feita em parceria, no Brasil, com o Instituto Butantan, não foi a vacina que provocou os resultados falso-positivos de HIV para os testes de alguns dos voluntários australianos. A vacina chinesa sequer foi testada na Austrália.
Luc Montagnier realmente disse em abril que a responsabilidade pela ‘criação’ do vírus é de um laboratório em Wuhan, na China. Mas os comentários do cientista francês foram fortemente criticados e refutados pela comunidade científica.
Montagnier disse ter analisado a sequência de RNA do novo coronavírus junto com o colega matemático Jean-Claude Perrez e, com base nisso, afirmou que não há motivos para acreditar que o coronavírus tenha vindo de um mercado de peixes. Para ele, essa versão é “história da carochinha”, já que, segundo ele, o vírus tem mutações que só podem ser feitas artificialmente. Montagnier também afirmou que o vírus foi fabricado acidentalmente em um laboratório de Wuhan, na China, alegando que o laboratório é especialista em coronavírus, trabalha com ele desde os anos 2000, e que, na tentativa de desenvolver uma vacina contra a Aids, os chineses acabaram criando o vírus. As declarações foram feitas para a Rádio Frequénce Medicale e para o site “Pourquoi doctor?”, ambos franceses.
Ainda em abril, a Agência Lupa e o Estadão mostraram que estudos científicos refutavam as declarações do virologista francês. Um dos estudos, publicado na revista científica Nature Medicine, apontou que a estrutura central do SARS-CoV-2 é muito semelhante a um tipo de vírus que infecta morcegos — 96% de similaridade com o vírus dos morcegos e de 85,5% a 92,4% com um que afeta pangolins, animais que são vendidos ilegalmente na China por conta de sua carne.
Se um vírus para afetar humanos fosse produzido em laboratório, ele deveria ser feito com a estrutura central mais próxima de um que já afetasse humanos, e não morcegos. Este estudo, dos pesquisadores Kristian G. Andersen, Andrew Rambaut, W. Ian Lipkin, Edward C. Holmes e Robert F. Garry, foi publicado em 17 de março deste ano, um mês antes de as declarações de Luc Montagnier ganharem o mundo. Como mostrou o Comprova em abril, a pesquisa concluiu que o novo coronavírus não é uma construção artificial ou que tenha sido manipulado por humanos.
No final de março, outro artigo publicado na mesma revista, desta vez de autoria dos pesquisadores Tommy Tsan-Yuk Lam, Na Jia e Wu-Chun Cao, seguiu na mesma linha do anterior e tratou os pangolins como possíveis hospedeiros intermediários do vírus que chegou aos humanos.
No final de abril, a Organização Mundial de Saúde (OMS) descartou a possibilidade de que o vírus tenha sido criado em um laboratório. Em seu site oficial, a OMS mantém uma página sobre mutações e acompanhamento da evolução do vírus.
O canal
O canal Hidrogênio Global foi fundado em 2013, tem 168 mil inscritos e 9,1 milhões de visualizações até 22 de dezembro, segundo o YouTube. O autor, Julio Fuertes, exibe vídeos voltados à venda de produtos como um gerador de hidrogênio para produção de água hidrogenada, com alegação de benefícios para a saúde, e de kit para uso de hidrogênio como combustível veicular. No entanto, nos últimos sete meses o canal passou a publicar majoritariamente vídeos de apoio ao presidente Jair Bolsonaro e alinhados com a direita. Há publicações com comentários sobre assuntos da pauta política do país, críticas ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB), a ministros do STF e outros. Há também críticas a medidas de isolamento social e às vacinas como estratégias para conter a pandemia de covid-19.
Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Comprova investiga conteúdos duvidosos relacionados às políticas públicas do governo federal e à pandemia do novo coronavírus. Informações falsas sobre as vacinas em desenvolvimento contra a covid-19 podem interferir na confiança das pessoas para serem submetidas aos imunizantes quando eles estiverem disponíveis no país, o que por consequência pode atrapalhar a estratégia de usar as vacinas para conter a disseminação do SARS-CoV-2 e reduzir os efeitos da pandemia. O vídeo verificado teve 55,8 mil visualizações e 12 mil curtidas nos três primeiros dias.
O Comprova já verificou outros conteúdos falsos sobre vacinas contra covid-19 em fase de desenvolvimento, como a verificação que apontou que não há comprovação de que a vacina da Pfizer tenha causado paralisia de Bell em voluntários e a que as vacinas para covid-19 não são capazes de provocar danos genéticos.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Esta apuração foi feita pela Rádio Noroeste, Marco Zero, NSC e Correio da Bahia. A checagem foi feita posteriormente pelo O POVO, Estadão e Correio do Povo.