Povos indígenas temem perdas de território após possível encolhimento de reserva dos Tapebas

Para discutir pautas relacionadas a direitos básicos e violações de territórios, grupos se reúnem em Maracanaú até esta quinta, 18, na 25ª edição da Assembleia dos Povos Indígenas do Ceará

18:30 | Nov. 17, 2021

Por: Alexia Vieira
ASSEMBLEIA debate a violência contra as mulheres indígenas (foto: FABIO LIMA)

Após a descoberta de possível perda de 100 hectares do território do povo Tapeba, em Caucaia, povos indígenas cearenses estão apreensivos com a situação das suas terras. Com apenas uma terra indígena totalmente regularizada no Estado, na cidade de Itarema, e outras em diversos estágios de disputas judiciais, os povos tradicionais reclamam da insegurança que os cerca.

“Se acontece em um território, todos nós estamos à mercê de acontecer a mesma coisa”, afirmou ao O POVO a cacique Irê, do povo Jenipapo Kanindé, durante a 25ª edição da Assembleia dos Povos Indígenas do Ceará. A reunião conta com a participação de 15 etnias do Estado na escola indígena Chuí, em Maracanaú, de 15 a 18 de novembro. É a primeira vez desde o início da pandemia que os povos se reúnem.

A terra dos Jenipapo Kanindé foi demarcada em 2017, mas o restante do processo de regularização, que ainda envolve a homologação e registro das terras está sem atualizações desde então. Cacique Irê afirma que 1.734 hectares são demarcados como de propriedade do seu povo. “Quem me garante que esses 1.734 hectares de terra vão estar até o final de todo o processo territorial? A qualquer momento o governo pode muito bem retroceder esses hectares”, questiona.

Já a terra dos Tapebas passou por diversos entraves judiciais e quatro processos de demarcação de terras nas últimas décadas. Dois deles foram anulados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2016, um acordo entre União, Estado, Município e comunidade Tapeba foi firmado para agilizar o processo de demarcação das terras.

Uma portaria declaratória assinada pelo então ministro da Justiça do governo de Michel Temer, Torquato Jardim, em 2017, garantiu posse permanente ao povo Tapeba de uma área de 5,2 mil hectares. Foi dessa área que eles alegam que houve retirada de 100 hectares sem a consulta do povo indígena. Eles descobriram a exclusão durante um processo de licença ambiental para uma empresa de extração de argila de proprietários indígenas no entorno da reserva.

“Nós identificamos que houve essa mudança sem que a própria coordenação regional da Funai (Fundação Nacional do Índio) tomasse conhecimento, e principalmente nós. Nós entendemos que essa exclusão de área é um crime que foi cometido, os servidores que fizeram isso devem responder criminalmente”, afirma o advogado Weibe Tapeba, liderança indígena.

De acordo com Weibe, a Funai enviou uma equipe da coordenação geral de geoprocessamento no início do ano para fixar limites do território Tapeba com um GPS geodésico, uma tecnologia mais avançada que o GPS utilizado em outras demarcações da terra.

Meses depois, quando foram encontradas práticas de extração de minério na área próxima à mata ciliar que contorna o Rio Ceará, os indígenas foram informados de um mapa da Funai diferente do disponível na coordenadoria regional da fundação que excluía 100 hectares de posse do povo Tapeba.

“Você abrir mão de um território sem dialogar com os principais interessados, que somos nós do povo Tapeba, nós acreditamos que foi uma violação de direitos. E nós não podemos de maneira alguma deixar do jeito que está”, diz Weibe. Os Tapebas irão acionar o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União para tentar reverter a decisão da Funai de encolher o território. Os indígenas também querem a instauração de um processo administrativo para apurar uma possível má conduta de servidores da fundação.

“É inadmissível que um órgão que foi criado exclusivamente com o objetivo de proteger os direitos indígenas tenha participação em uma situação tão desastrosa como essa que é a redução do território Tapeba”, opina o cacique Jorge Tabajara, de Poranga, que também luta pela demarcação da terra onde mora. “A nossa luta é constante para ter nosso território livre e liberto para que possamos cuidar dele como só nós sabemos.”

Ceiça Pitaguary, coordenadora da Federação dos Povos e Organizações Indígenas no Ceará (Fepoince), acredita que a luta pelo direito indígena às terras demarcadas é primordial para conseguir também outros direitos que vem sendo desrespeitados pelo Governo Federal. “Nós temos escolas indígenas, postos de saúde, professores contratados, equipes de saúde contratadas. O território precisa ser regularizado para essas políticas continuarem acontecendo.”

Funai alega que indígenas vão acompanhar medição oficial

Procurada, a Fundação Nacional do Índio (Funai) informou que a referida área encontra-se sob processo de demarcação e não se encontra no domínio da União. Segundo a Funai, uma medição oficial ainda será realizada, a qual terá "o acompanhamento pelos indígenas e com instrumentos de elevada precisão geodésica".

Em relação à redução da área, a Funai explicou que "não há o que se falar" porque a a etapa da demarcação física ainda não foi realizada. "Além disso, a demarcação seguirá os limites aproximados delimitados na referida Portaria Declaratória, a qual deriva do estabelecido em ação judicial na 3ª Vara Civil Federal de Fortaleza", acrescentou.

Leia a nota na íntegra:

"A Fundação Nacional do Índio (Funai) informa que a referida área encontra-se sob processo de demarcação, na fase DECLARADA, e por conseguinte não se encontra no domínio da União.

A delimitação da área está publicada na Portaria nº 734, de 31 de agosto de 2017, a qual apresenta em seu conteúdo a delimitação aproximada (ou seja, não precisa) conforme redação da própria Portaria e inerente nesse tipo de trabalho.

A medição precisa oficial será realizada apenas na ocasião da demarcação física/georreferenciamento, conforme o Decreto 1775/1996, ação que, quando realizada, terá o acompanhamento pelos indígenas e com instrumentos de elevada precisão geodésica.

Não há que se falar, portanto, em diferença de medição ou redução da área, dado que a etapa da demarcação física ainda não foi realizada. Além disso, a demarcação seguirá os limites aproximados delimitados na referida Portaria Declaratória, a qual deriva do estabelecido em ação judicial na 3ª Vara Civil Federal de Fortaleza.

Por fim, a Funai esclarece que a demarcação física depende de prévio reconhecimento da área in loco, sobretudo para possibilitar a estimativa dos custos, equipamentos, número de trabalhadores, prazo e logística de acesso necessários, bem como as características de solo e vegetação. Este foi o objetivo da ação realizada pela Funai, acompanhada de representante da comunidade indígena. Sendo assim, trata-se de diligência preparatória e sem nenhum cunho decisório ou vinculante."

Assembleia de Povos Indígenas debate também violência contra a mulher indígena

Além de temas como a demarcação de terras, saúde e educação, a pauta da luta das mulheres indígenas pela autonomia e reconhecimento entrou em debate durante a 25ª Assembleia de Povos Indígenas. Lideranças femininas, como a cacique Irê, filha e sucessora da cacique Pequena, do povo Jenipapo Kanindé, acredita que o tema é necessário.

“Nós vivemos um machismo patriarcado enraizado e deixado pelos colonizadores, e muitas vezes isso acaba se confundindo dentro das aldeias. Os nossos parentes homens acabam achando que isso é cultura. E isso não é cultura”, afirma Irê. Ela explica que no tempo dos seus antepassados, as mulheres eram livres e “faziam o que elas bem entendiam”.

Atualmente, muitas são cerceadas por companheiros e silenciadas em debates importantes, de acordo com a cacique. “Alguns falam: ‘Ah, vamos levar a mulher para a Assembleia porque ela vai servir para cozinhar, para limpar’. Não, nós não queremos ser vistas assim. Nós vamos pra assembleia porque nós temos temas relacionados ao nosso povo, a nós mulheres, e precisamos nos fazer presentes nas plenárias, no microfone, fazendo o uso da fala”, diz.

A violência contra a mulher não só física como psicológica, segundo a liderança, é percebida em espaços indígenas. A militante indígena Josenir Anacé levou as duas filhas adolescentes para a Assembleia e acredita ser fundamental que elas também escutem a mesa de debate sobre o assunto.

“Nós vamos ter um conhecimento a mais pra poder levar pra mulherada dentro da reserva. Porque vivemos em uma reserva, e questionam: ‘Ah então lá não tem violência?'. Tem, todo canto tem. É isso que nós estamos procurando quebrar”.