Jeri: cartório registrou terras da empresária em 1983 e negou existência em 2000

Conselho Comunitário de Jericoacoara cita certidão negativa, emitida pelo cartório de Acaraú, que desconhecia propriedades particulares sobrepostas à vila quando houve a regularização fundiária na região. Material está anexado à manifestação formal entregue à Procuradoria Geral do Estado

20:44 | Nov. 14, 2024

Por: Cláudio Ribeiro
Imagem área da vila de Jericoacoara, área que estaria em sobreposição com propriedade da empresária Iracema Correia São Tiago (foto: Alexis Boucher/Divulgação Conselho Comunitário de Jericoacoara)

O Conselho Comunitário de Jericoacoara divulgou nesta quinta-feira, 14, um novo documento de valor cartorário, publicado 24 anos atrás no Diário Oficial do Estado (DOE), para reforçar os argumentos de que a empresária Iracema Correia São Tiago, de 78 anos, não teria propriedade particular sobreposta à área da vila de Jeri. 

Em análises ao histórico fundiário da região, o Conselho resgatou a portaria nº 102/2000,  do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace). O órgão menciona uma certificação emitida pelo Cartório de Acaraú, de que não havia propriedades registradas ou sob posse na área hoje em disputa, onde está a Área de Preservação Ambiental (APA) de Jericoacoara. A citação foi publicada no DOE de 21 de março de 2000 e permitiu a incorporação de terrenos sem proprietários ou posseiros regularizados ao patrimônio estadual.

O documento é um dos que estão anexados na manifestação formal de defesa, feita pelo Conselho Comunitário, apresentada na tarde de quarta-feira, 13, à Procuradoria Geral do Estado (PGE). A entidade representa moradores, comerciantes e empresários, que questionam a validade dos papéis imobiliários da empresária. A PGE confirmou ao O POVO ter recebido a manifestação do Conselho Comunitário protocolada no órgão na tarde de quarta, 13, e que "irá analisar as documentações apresentadas" para se pronunciar sobre o material recebido.

A portaria faz referência a uma "Certidão Negativa da Inexistência de Matrícula e/ou Registro ou Transcrição da Transmissão Imobiliária expedida pelo Titular do 2º Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Acaraú". O Idace requisitou a certidão à época do processo de regularização fundiária na região, realizado entre 1995 e 2000. Por falta de domínio particular ou qualquer reclamação administrativa, o Estado “arrecadou sumariamente” naquele momento 6.183,1810 hectares (“seis mil cento e oitenta e três hectares, dezoito ares e dez centiares”) como terras públicas.

O Conselho destaca que, ao detalhar as coordenadas da área arrecadada e listar seus confinantes, a portaria do Idace especifica que era mais ao sul que estavam as terras da empresa M.Machado, de propriedade da família do ex-banqueiro Manoel Machado. Tanto em relação ao Parque Nacional de Jericoacoara como no trecho onde houve a regularização. O lugar é mais conhecido como “firma Machado” entre os moradores mais antigos de Jeri.

O Cartório de Acaraú é o mesmo onde o empresário José Maria de Morais Machado, ex-marido de Iracema e filho de Manoel Machado, teria registrado, em janeiro de 1983, os documentos da Fazenda Junco I, que seria coincidente com o território da vila. O casal se divorciou em 1995, quando a mulher herdou os bens divididos. Ela também recebeu as fazendas Junco II e Caiçara, que têm trechos sobrepostos com a área do Parque Nacional de Jericoacoara. Machado morreu em 2008.

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Na documentação apresentada pelo Conselho à PGE consta, além da portaria 102/2000, o laudo assinado pelo engenheiro cartógrafo Paulo Roberto Lopes Thiers, doutor em geografia e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). O levantamento questiona o tamanho das terras da empresária e aponta que teriam sido ampliadas de forma "indevida e inexplicável". A propriedade teria crescido 109% a partir de averbações feitas em cartórios da região, segundo o especialista.

Durante a regularização das terras, entre 1995 e 2000, o Conselho Comunitário lembra que o Idace criou o “Comitê de Acompanhamento da Regularização Fundiária de Jericoacoara”, que incluía os moradores para garantir a legitimidade das posses cadastradas. Houve um levantamento topográfico detalhado e a geração de documentos que atestaram a inexistência de propriedades privadas na área arrecadada.

Em acordo com Estado, atualmente suspenso, empresária fica com 19 lotes na vila

Em julho de 2023, com a escritura em mãos, os advogados de Iracema Correia São Tiago procuraram o Estado reivindicando a propriedade e propondo acordo para assumir somente áreas remanescentes, sem ocupações. O Conselho contesta, junto à PGE, que a empresária seja "a dona" de mais de 80% (73,5 hectares) de terras sobrepostas à vila de Jeri (55 hectares). E questiona o acordo que já havia sido firmado entre ela e o Estado do Ceará, para que recebesse 19 lotes dentro da localidade (que somam 3,47 hectares) e abrisse mão de terrenos com habitações ou estabelecimentos comerciais.

O acordo estava assinado desde maio deste ano, mas foi descoberto pela comunidade somente em meados de outubro último, quando reivindicou o uso de um terreno da vila para a construção de uma horta comunitária. No dia 14 de outubro, a PGE suspendeu por 20 dias o acerto com a empresária, para aguardar uma manifestação formal da entidade de moradores. Depois, a suspensão se estendeu por tempo indeterminado, para uma nova pesquisa cartorária sobre as terras, com a possibilidade de revisão das bases do acordo.

Defesa de empresária diz que estudo é "tendencioso"

Procurada pelo O POVO, a defesa de Iracema Correia informou que até o ínicio da noite desta quinta-feira, 14, ainda não havia acessado os argumentos apresentados pelo conselho, sendo informada apenas pela imprensa, e destacou que vai apresentar sua contra-argumentação quando for comunicada pela PGE. 

Contudo, órgão diz ter "estranhado" o laudo feito pelo engenheiro Paulo Roberto, afirmando que estudo "ignorou a existência dos limites físicos ao Norte da Fazenda Junco I". 

"Como pode um estudo que busca encontrar os limites da propriedade ao Norte, ao Sul, ao Leste e ao Oeste não citar por uma única vez, ao longo de 20 páginas, o limite Norte? Isso, por si só, demonstra a fragilidade do laudo e compromete todo e qualquer resultado em decorrência deste ato de omissão", aponta.

Defesa ainda ressalta que os argumentos usados no estudo "são frágeis e tendenciosos" e aponta que a arrecadação da vila ocorreu em 1997, via Portaria 461/97, anterior à Portaria do Idace Nº102/2000, afirmando que documento trata de outra Arrecadação feita pelo Governo do Ceará.

Também ressalva que os documentos apresentados pela empresária aos órgãos são anteriores a 2000 e destaca que família da mesma irá tomar "medidas jurídicas cabíveis" contra acusações que Iracema tem sido alvo, tal como a de estar praticando grilagem. (Colaborou Gabriela Almeida)

Veja nota da defesa na íntegra:

"A defesa de Iracema Correia São Tiago informa que não teve acesso ainda aos argumentos apresentados pelo Conselho Comunitário de Jericoacoara à Procuradoria Geral do Estado (PGE). E que tão logo seja comunicada pela PGE, apresentará sua contra argumentação.

Com base apenas nas informações que teve acesso pela imprensa, a defesa estranha que o trabalho executado pelo geógrafo Paulo Roberto Lopes Thiers ignore a existência dos limites físicos ao Norte da Fazenda Junco I, indicados em todas as matrículas que compõem a propriedade como sendo o “Litoral, o mar e as terras de marinha”.

Como pode um estudo que busca encontrar os limites da propriedade ao Norte, ao Sul, ao Leste e ao Oeste não citar por uma única vez, ao longo de 20 páginas, o limite Norte? Isso, por si só, demonstra a fragilidade do laudo e compromete todo e qualquer resultado em decorrência deste ato de omissão.

É de se imaginar que a próxima tentativa de desqualificação dos direitos da Sra. Iracema seja mudar a praia de lugar ou quem sabe mudar os pontos cardeais ensinados no ensino fundamental.

Os argumentos utilizados no estudo são frágeis e tendenciosos, o que demonstra apenas o inconformismo de um grupo de empresários estrangeiros com interesses contrariados e que busca o monopólio da Vila de Jericoacoara, alguns já ocupando áreas públicas irregularmente.

A arrecadação da Vila de Jericoacoara, objeto da discussão, foi realizada em 1997, por meio da Portaria 461/97, portanto, anterior à Portaria do Idace Nº102/2000, sendo um documento já conhecido pela defesa e que trata de outra Arrecadação feita pelo Governo do Ceará da Área de Proteção Ambiental (APA), que mais tarde daria origem ao Parque Nacional de Jericoacoara, não tendo relação direta com a Arrecadação da área da Vila.

De toda a forma, é mais um documento que deixa clara a “Ressalva” em caso de arrecadação, o que protege o direito à propriedade mesmo de quem não tenha sido encontrado à época, o que demonstra a própria incerteza quanto a inexistência de propriedades particulares no perímetro. Apenas relembrando o texto da Portaria 461/97:

“Ficam RESSALVADOS do presente Memorial Descritivo, os imóveis de domínio particular que porventura se encontrarem localizados no perímetro da área acima referida com outras características e confrontações.”

Os documentos apresentados pela Sra. Iracema aos órgãos competentes são anteriores ao ano 2000 e todos comprovam, de forma inequívoca, a titularidade, a localização e a extensão da propriedade com os limites físicos bem definidos, tudo atestado pelos órgãos federais Incra, Icmbio e SPU e, por derradeiro, pelo Idace.

A Sra Iracema tem sido vítima de uma série de acusações descabidas, absurdas, algumas delas que podem ser tipificadas como crime de calúnia, além de ser alvo de campanhas de divulgação de inverdades e notícias difamatórias e de ser acusada direta ou indiretamente de grilagem. A Família informa que está registrando essas acusações criminosas para tomar as todas as medidas jurídicas cabíveis que resguardem sua honra e penalizem os responsáveis".