Jeri: comunidade apresenta novo laudo questionando tamanho de terras da empresária

Documento, assinado por engenheiro cartógrafo e doutor pela UFC, aponta que área com suposta sobreposição à vila cresceu 109%, de forma "indevida e inexplicável" em diversas averbações feitas em cartórios da região

Um novo laudo técnico, apresentado pelo Conselho Comunitário de Jericoacoara, volta a sacodir o epicentro da polêmica fundiária envolvendo a sobreposição das terras da vila famosa, uma das mais visitadas do litoral cearense, com a propriedade particular indicada pela empresária Iracema Correia São Tiago, de 78 anos. Com uma escritura, ela reivindica 83% da área da localidade.

O documento, com a data de 3 de novembro último, tem 19 páginas e é assinado pelo engenheiro cartógrafo Paulo Roberto Lopes Thiers, doutor em geografia e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ele leciona atualmente as disciplinas Sensoriamento Remoto, Tecnologias da Geoinformação e Cartografia Digital. O especialista afirma que a Fazenda Junco I, pertencente a Iracema, "não possui área superior a 441,04 hectares", portanto não alcançaria o espaço atual da vila, apesar de ter descrição maior em matrículas registradas em cartórios da região.

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O laudo aponta que são questionáveis os métodos e procedimentos adotados para definir as dimensões de 942,24 hectares, pleiteados pela empresária, o que tornaria imprecisa e irregular a medida sobreposta com a vila e trecho do Parque Nacional de Jericoacoara - criado em 2002 e ampliado em 2007. "A área reivindicada pela empresária sofreu uma inexplicável ampliação do terreno em 109%, até alcançar a Vila de Jericoacoara", diz o informe divulgado pelo Conselho Comunitário.

Thiers indica no seu levantamento que "essa sobreposição ocorre devido a falhas históricas nos registros de terra", em engordas feitas por uma série de averbações em cartórios desde a década de 1980. E que a poligonal gerada com a unificação de três matrículas (números 827, 884 e 885) que formaram a fazenda de Iracema "não chega até o distrito de Jericoacoara". Os moradores apontam que as medidas originais da "firma Machado", como é conhecida a propriedade, seriam menores, baseadas em marcos físicos conhecidos por muitos da região.

Entre as inconsistências técnicas, o engenheiro explica que "foi usado um sistema de referência errado (Datum Geodésico Horizontal Córrego Alegre) em vez do sistema oficial do Brasil (SIRGAS2000 - Sistema de Referência Geocêntrico para as Américas)". Ele também menciona que as coordenadas da topografia teriam sido colhidas "em um lance único" sem considerar, em linha reta, dunas e morros muito altos da região. Nessas coletas topográficas, em uma única medição, teriam sido informadas distâncias entre pontos superiores a 6 mil metros, mas utilizando equipamento que só alcançaria 2.255 metros de um ponto a outro por vez.

No relatório, ele cita áreas acrescidas "indevida e inexplicavelmente", usando dados e imagens de georreferenciamento. Como num trecho da matrícula 827 (uma das apresentadas pela empresária), que teria expandido de 179,93 ha para 220,47 ha, "acréscimo de 40,07 ha, corresponde a 23%". Ou uma medida de fundos da matrícula 885, que teria passado "de 6.000 para 8.890 metros". Diferença de 2.890m, que ele chama "a perder de vista" e que, ao final, incluiu 34,79 ha a mais (44%) na matrícula.

O Conselho reúne moradores, comerciantes e empresários, que questionam a validade dos papéis imobiliários da empresária. A situação tem mobilizado a comunidade, em manifestações na praia e pelas redes sociais, para também desfazer definitivamente o acordo firmado entre o Governo do Estado e a empresária. No acerto, ela assumiria 19 lotes de áreas sem construções dentro da vila.

O acordo foi assinado em maio deste ano entre as partes, mas a comunidade só teria descoberto a tratativa sobre a vila em meados de outubro - quando reivindicou o uso de um terreno para a construção de uma horta comunitária. O caso ganhou ampla repercussão, com a possibilidade de Jeri quase totalmente a uma pessoa.

No dia 14 de outubro, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) decidiu travar, por 20 dias, o combinado com Iracema, para aguardar uma manifestação formal da entidade de moradores. No dia 1º de novembro, O POVO divulgou que o acordo está suspenso, por tempo indeterminado, para uma nova pesquisa cartorária sobre as terras da empresária, com a possibilidade de rever as bases do acordo. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deve concluir visitas a cartórios de Acaraú, Cruz e Jijoca de Jericoacoara e emitir um parecer até o fim de novembro.

Defesa da empresária diz que laudo é tendencioso e questiona interesses sobre áreas da vila

Procurados nesta sexta-feira, 8, os advogados da empresária Iracema Correia São Tiago emitiram uma manifestação, de cinco páginas, como contestação preliminar ao laudo divulgado pelo Conselho Comunitário de Jericoacoara. Eles consideram o documento assinado pelo engenheiro cartógrafo Paulo Roberto Lopes Thiers como uma "análise claramente tendenciosa, repetitiva e incompleta".

Num trecho mais incisivo, a nota diz que  "Iracema e a família lamentam que o povo de Jericoacoara esteja sendo usado de forma vil para proteger os interesses econômicos de grupos empresariais que exploram o turismo em Jericoacoara e vem invadindo áreas públicas para ampliar seus hotéis e pousadas,
tomando inclusive ruas".

A defesa de Iracema lança questões como "Quem tem interesses nas áreas livres da Vila de Jericoacoara?" ou "Como os títulos dados pelo Idace aos nativos foram parar nas mãos de empresários de fora do Ceará, sobretudo estrangeiros, inclusive com origem em paraísos fiscais?".

Segundo a resposta dos representantes de Iracema, o especialista "omite trechos importantes e dá interpretação parcial das informações contidas em documentos oficiais, que conforme a Constituição Federal possuem fé inquestionável, quando no mínimo, deveria mostrar 'aos leigos' a verdade
contida naqueles documentos em sua integralidade".

Eles citam que os registros cartorários remontam a 1941, quando Jericoacoara ainda pertencia ao município de Acaraú e eram referenciados "por marcos físicos claros, como rio e litoral, fato este omitido ardilosamente pelo referido 'laudo' encomendado". Esses marcos, segundo a nota, não teriam mudado ao longo dos anos.

Sobre o questionamento feito no laudo ao uso do Datum Córrego Alegre, tecnologia utilizada no
georreferenciamento da área, os advogados citam que o sistema SIRGAS2000 foi usado simultaneamente no País até fevereiro de 2015. Depois, por regra federal, os sistemas geodésico e cartográfico adotaram a  modelagem única pelo SIRGAS2000. "Logo não houve nenhuma falha técnica", afirma a defesa da empresária.

Os advogados dizem que houve correção de medidas, por recursos tecnológicos, "sem jamais promover a alteração dos limites físicos ou a invasão das terras confinantes". Destacam posicionamentos técnicos já expostos por órgãos como o Idace, Incra, ICMBio e SPU (Secretaria do Patrimônio da União).

"A senhora Iracema informa que também contratou uma equipe de profissionais, capitaneada por perito vinculado a instituto de renome e abrangência nacional de forma a trazer mais esclarecimentos, enquanto aguarda confiante a análise a ser realizada pelas demais diligências determinadas", afirma o comunicado.

PGE aguarda manifestação formal do Conselho

Contatada, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) informou que ainda não recebeu formalmente, até a manhã desta sexta-feira, 8, nenhuma documentação ou manifestação do Conselho sobre o laudo técnico, assinado pelo engenheiro cartógrafo. "A PGE só vai se manifestar quando for inserido esse laudo dentro do processo. A Procuradoria ainda está no aguardo dessa tramitação". O órgão diz que também "aguarda ainda a manifestação do Conselho Comunitário sobre a matéria dentro do processo".

"O que nós queremos é um processo transparente e justo, comprometido em proteger a integridade do território e garantir o respeito aos direitos de propriedade dos moradores e comerciantes locais. Por isso, estamos investigando todo o histórico dessa propriedade porque existem fortes indícios de adulteração dos documentos. Todo mundo sabe que as terras dessa família estão pro lado do Córrego da Forquilha", disse Lucimar Marques, presidente do Conselho.

Escritura mostra que empresário pagou 620 mil cruzeiros, em 1983, pelas propriedades

A escritura nas mãos da empresária Iracema Correia São Tiago é datada de 26 de janeiro de 1983, 41 anos atrás. Foi lavrada no Cartório de Registro de Imóveis de Acaraú. A aquisição da fazenda Junco I teria sido feita à época pelo seu então marido, o empresário José Maria de Morais Machado, falecido em 2008.

Ele teria pago 620 mil cruzeiros (Cr$), a moeda vigente, aos donos das três propriedades menores. Seriam para o plantio de caju e coco, com incentivo do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), órgão federal extinto em 1989. O casal se separou em 1995 e Iracema herdou a propriedade na partilha de bens. Numa conversão livre para o Real (R$), equivaleriam hoje a pouco mais de 2 reais. 

Em julho de 2023, ela levou a documentação ao Estado, reivindicando a área coincidente com a vila (que mede 55 hectares), mas propondo um acordo para receber terras remanescentes, sem construções existentes. A PGE e o Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) confirmaram que desconheciam a propriedade sobreposta à vila de Jeri, até serem procurados pela empresária.

Iracema não havia se manifestado à gestão estadual entre 1995 e 1997, quando houve a regularização fundiária dos imóveis de Jericoacoara. Depois de trocar de advogados, a família teria sido reorientada a reivindicar a área. Apesar do tempo posterior, o título de propriedade não teria perdido validade.

Além da Junco I, a empresária também é dona das fazendas Junco II e Caiçara. As três têm sobreposição de mais de 1.600 hectares com o Parque Nacional de Jericoacoara. Iracema tem duas ações de indenização na Justiça Federal, onde ela cobra algo em torno de R$ 150 milhões - cifra dita pelo advogado Marcellus Melo, um dos que a representam nos processos.

Ambas as ações tramitam na comarca federal de Sobral. Um dos processos já foi julgado, mas teve recurso apresentado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio). O outro está concluso para apreciação da 18ª Vara Federal.

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