Após separação, gêmeas siamesas do Ceará levam vida normal e continuam evoluindo no tratamento
Maria Ysadora e Maria Ysabelle, de 3 anos, nasceram unidas pelo crânio e passaram por um procedimento cirúrgico nunca antes realizado no País, com duração de 20 horas e uma equipe de 30 profissionais
15:20 | Mai. 04, 2020
O nascimento das gêmeas cearenses Maria Ysadora e Maria Ysabelle, de 3 anos, foi inédito na medicina brasileira. Unidas pelo crânio e por parte do cérebro, as siamesas foram preparadas desde o momento em que vieram ao mundo para passar por um procedimento histórico no País. Em 2018, a família saiu de Patacas, distrito de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), rumo a Ribeirão Preto, em São Paulo, onde foi realizada a cirurgia de quase 20 horas que as separou. Um ano e sete meses depois, as meninas levam uma vida normal e continuam evoluindo bem no tratamento.
Aos cinco meses de gestação, os pais das gêmeas, Débora e Diego Freitas, descobriram que elas nasceriam com uma malformação, porém somente após um exame de ressonância magnética foi possível conhecer a raríssima dimensão do caso, que ocorre uma vez a cada 2,5 milhões de nascimentos.
Não há fator de risco, nem genético. Por obra do acaso, os membros de gêmeos univitelinos não se separam e os bebês nascem siameses craniópagos (ligados pelo topo do crânio). O caso das gêmeas siamesas do Ceará foi o nono de uma das equipes médicas mais experientes do Mundo à época. “No começo ficamos preocupados, mas no decorrer do tempo fomos nos habituamos”, relata Diego Freitas, pai das gêmeas.
A rotina com duas crianças unidas pelo crânio não era fácil. Na maior parte do tempo, as meninas ficavam deitadas. Ao conhecerem o neurocirurgião pediátrico Eduardo Jucá, que é coordenador do Serviço de Neurocirurgia Pediátrica do Hospital Infantil Albert Sabin, em Fortaleza, as esperanças dos pais foram renovadas. “Ele disse que daria certo a cirurgia, mas teríamos de ter paciência”, afirma Diego.
O médico tomou as providências para encaminhar Maria Ysadora e Maria Ysabelle ao Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), e acompanhou todos os procedimentos cirúrgicos das gêmeas. “As crianças estavam unidas pelo crânio e parte do cérebro, uma situação muito rara e delicada. Se não fosse feito o tratamento, não seria possível uma vida plena e independente para elas”, considera Eduardo Jucá.
A preparação até a cirurgia
Diego relembra que o nascimento das filhas despertou a curiosidade de muitos, mas as visitas às meninas foram restritas, por recomendação, para preservar a saúde das crianças ao máximo. As pequenas já estavam sendo preparadas para a cirurgia mais importante de suas vidas, que ocorreria dali a dois anos e seis meses.
Em fevereiro de 2018, a família das gêmeas embarcou para São Paulo, com a viagem custeada pela Secretaria de Saúde do Ceará (Sesa). “Logo quando a gente chegou, estávamos sozinhos e a atenção ficou voltada pra elas. Foi difícil ter que deixar tudo aqui, mas graças a Deus deu tudo certo”, recorda Diego.
Na manhã do dia 27 de outubro do mesmo ano, às 6 horas, Maria Ysadora e Maria Ysabelle eram preparadas entrar no centro cirúrgico. No total, Diego diz que foram pelo menos 24 horas de tensão e espera. “A cada uma hora e meia ou duas horas, vinham médicos dar informações e dizer que elas estavam bem, mas mesmo assim ficávamos apreensivos”, conta o pai das meninas.
As gêmeas passaram por seis procedimentos no total, sendo quatro cirurgias. A primeira foi realizada no dia 17 de fevereiro de 2018. A separação se deu de forma progressiva para que os cérebros das meninas pudessem se habituar a uma vida independente um do outro. Até aquele momento, eles tinham funcionado sempre em conjunto, incluindo as mesmas drenagem venosas.
A cirurgia final de separação, inédita no Brasil, foi realizada no dia 27 de outubro do mesmo ano, durou aproximadamente 20 horas e mobilizou cerca de 30 profissionais entre neurocirurgiões, cirurgiões plásticos, anestesistas, enfermeiros e outros. Além disso, o procedimento também teve a consultoria do neurocirurgião norte-americano James T. Goodrich, que havia realizado cirurgias similares com sucesso. No fim de março de 2020, James morreu vítima do Covid-19i.
A demora e a ansiedade dos pais de Maria Ysadora e Maria Ysabelle foram compensadas, enfim, viram as filhas deixar o centro cirúrgico em duas macas diferentes, desta vez, separadas. “Quando elas saíram, foi uma emoção grande, a gente ficou muito feliz. Com elas separadas, ia ficar tudo bem mais fácil”, comenta Diego.
Para o médico Eduardo Jucá, a memória das horas que viveu naquela sala de cirurgia estão muito bem guardadas. “Foram dois anos de planejamento e de articulação de uma equipe grande. Participar das cirurgias foi um desafio técnico, mas também uma emoção grande por poder proporcionar à família esse tratamento que, até então, não existia no País”, realça.
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Estimada em US$ 2,5 milhões na rede privada dos Estados Unidos à época, as cirurgias foram custeadas pela Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), pela Faculdade de Medicina de São Paulo e pelo Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.
A vida hoje
O sonho de pegar no colo uma filha de cada vez, que parecia difícil para Diego e Débora, agora é realização diária. Após o procedimento bem sucedido, as meninas foram assistidas de perto por fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e psicólogos. Depois de um ano e um mês longe de casa, no dia 29 de março de 2019, Maria Ysadora, Maria Ysabelle e os pais, Diego e Débora, retornaram ao lar, no distrito de Patacas, em Aquiraz, onde ainda residem atualmente.
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Uma vez por ano, as gêmeas ainda retornam ao HC de Ribeirão Preto para apresentar novos exames de rotina, que comprovam uma avanço excelente em seu quadro. ”Elas estão evoluindo com as terapias de adaptação. É realmente uma evolução muito satisfatória para um caso que uniu o País todo em uma corrente do bem. Costumo dizer que o ato de separar duas pessoas acabou unindo muitas outras”, comenta o neurocirurgião Eduardo.
Apesar da fisioterapia interrompida por conta da pandemia, o pai das meninas afirma que a família está sempre em contato com os médicos que as acompanharam em São Paulo e em Fortaleza. “Hoje elas têm uma vida normal, brincam, passeiam”, se orgulha Diego. Ele comenta que as meninas ainda não frequentam a escola, mas planeja matriculá-las no próximo ano. Se depender dos pais, as irmãs continuarão unidas, mas somente pelo sentimento de amor que as conectam desde o nascimento.