Podem a ciência e a cultura popular andar juntas na previsão e no monitoramento do clima?

Especialistas apontam que integração entre ciência e tradição pode beneficiar as previsões climáticas, mas prática requer cautela

A chegada da quadra chuvosa no Ceará é esperada com um misto de ansiedade e esperança. Ao longo das décadas, muitas pessoas, especialmente no meio rural e que tiram da terra seu sustento, confiaram nos saberes populares para entender os sinais da natureza e prever o clima. Mas será que esses conhecimentos podem se aliar às previsões cada vez mais precisas da meteorologia moderna?

No último sábado, 11, ocorreu o 29º Encontro de Profetas da Chuva, que reuniu mais de 30 profetas para valorizar os conhecimentos populares e divulgar as profecias sobre a quadra chuvosa no Estado em 2025. O evento ocorreu no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) de Quixadá, a 169 km de Fortaleza.

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Em 2024, os profetas acertaram as chuvas na média, com alguns projetando volumes acima. Para 2025, a previsão de grande parte é de "inverno muito bom", com maior fluxo de chuvas em março e abril.

Segundo Yls Rabelo Câmara, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisadora dos profetas da chuva, as previsões populares continuam a desempenhar um papel fundamental, especialmente nas comunidades rurais.

“Os profetas confiam na sabedoria acumulada ao longo do tempo. Para eles, as condições naturais, como o comportamento dos animais e o cheiro da terra, possuem significados profundos, que podem antecipar a chegada das chuvas”, explica a professora.

Uma das profetizas mais emblemáticas do Ceará é Maria Lourdes Leite Lemos. Aos 87 anos de idade, a ex-agricultora e professora foi a primeira mulher a integrar o projeto Profetas da Chuva de Quixadá. Ela se orgulha de ser reconhecida como “Rainha dos Profetas”.

A sabedoria de Dona Lourdes vem de uma vida inteira de observação. Uma das experiências que dona Lourdes mais confia é a das Pedras de Sal. "Eu pego pedrinhas de sal e coloco em uma “taubinha”, marcando de janeiro até julho. Se aquelas pedrinhas de sal desmanchassem todinhas, que molhasse a “taubinha”, aí seria um bom inverno”, explica.

Ela também explica sobre o sinal da Barra do Sol. “De manhã cedinho, 5h, você olha para o céu e ela está lá", diz. A barra do sol é uma faixa de nuvem horizontal na frente do sol. Quando aparece, é considerada, pelos profetas, como um sinal de chuva, especialmente se houver nuvens escuras ao redor.

Ela conta que, até hoje, é comum agricultores a consultarem para terem as previsões de quando vai “começar a chover”. Pela idade, a profetiza agora precisa do auxílio dos filhos para fazer as previsões, que herdam o conhecimento da mãe. “De início a gente ia para os matos, agora eles que fazem isso por mim”.

Aos 97 anos, José Célio de Assis é o mais longevo a participar do Encontro dos Profetas. Ele conta que aprendeu a observar os sinais do clima ainda menino, trabalhando na roça. "Comecei a prestar atenção nos ventos, nas nuvens, na temperatura. Aqui no Ceará, o vento Aracati é um bom indicador. Quando ele vem firme, o inverno está bom", explicou.

Ele indica que “vai ser um bom inverno" esse ano. "Janeiro, fevereiro, março e abril sempre são meses de muita chuva. Esse ano não vai ser diferente. Às vezes chove aqui, chove ali, mas o importante é que vai chover", declarou José Célio.

Para ele, a experiência é um presente que vem com os anos. "Hoje, com 97 anos, ainda continuo aprendendo com a natureza. É um conhecimento que não está nos livros, mas no dia a dia."

De acordo com os profetas, outros sinais que podem indicar bom período chuvoso são:

Mandacaru: A floração fora do período chuvoso do mandacaru (um tipo de cacto) é vista como sinal de que a chuva está próxima.
Cumaru: Se árvores como o cumaru florescem bem fora do período chuvoso acredita-se que uma boa temporada de chuvas está por vir.
Formigas: O movimento das formigas, especialmente quando elas reforçam as entradas com barro, é interpretado como um sinal de chuva.
Estrela D'Alva: Quando o planeta Vênus, conhecido pelos sertanejos como Estrela Dalva, aparece cedo no mês de outubro, isso é um sinal de bom inverno

As mudanças climáticas, no entanto, têm impactado as práticas culturais de prever o tempo. “Está havendo uma transformação no clima, na fauna e na flora locais, ou seja, nos elementos sobre os quais os profetas baseiam suas previsões. Isso pode gerar um grau de insegurança nas previsões”, afirma a professora Yls Rabelo Câmara

O saber científico

No Ceará, a previsão do tempo é feita pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme). Para a quadra chuvosa de 2024, a previsão inicial indicava 45% de chance de chuvas abaixo da média, enquanto os profetas previam um bom período chuvoso.

Em abril, a Funceme revisou sua previsão, indicando 40% de chance de chuvas dentro da média entre abril e junho. A quadra chuvosa de 2024 terminou como a melhor dos últimos 15 anos no Ceará, 25% acima da média histórica.

Participando do 29º Encontro dos Profetas, o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Ceará (Faec), Amílcar Silveira, criticou os prognósticos recentes no Ceará. “Acredito na ciência e cada vez mais nos profetas. Mas os prognósticos da Funceme têm sido questionáveis. Muitos produtores deixaram de plantar no ano passado por acreditarem na previsão, e eu fui um deles”, disse.

A previsão climática envolve o monitoramento das variáveis meteorológicas e oceânicas, especialmente as temperaturas dos oceanos Pacífico e Atlântico, que influenciam a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), responsável pelas chuvas no Nordeste.

Professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental (DEHA) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Cleiton Silveira ressalta que a meteorologia atua principalmente com probabilidade.

“A Funceme classifica as chuvas em três categorias: acima, normal e abaixo da média, emitindo previsões probabilísticas que indicam a chance de ocorrência de cada cenário. Frequentemente se dá ênfase à categoria mais provável, embora todos os cenários possam se concretizar, mesmo aqueles com menor chance”, diz

A Funceme declara que respeita a tradição dos profetas da chuva. “Faz parte da cultura do povo cearense. Porém, neste âmbito, as observações não se misturam, pois a Funceme se baseia na ciência”.

Diálogo entre ciência e sociedade beneficia ambos

Diretor das Unidades de Negócio do Interior da Cagece, Carlos Salmito detalha que a Companhia utiliza tanto dados científicos quanto as previsões dos "profetas" no planejamento de estratégias para o abastecimento hídrico.

“É uma tradição que deve ser preservada. Nosso planejamento é regionalizado e, com base no histórico, sabemos que áreas como a Região Central enfrentaram escassez hídrica ano passado. Por isso, estamos tomando medidas como a construção de adutoras, poços profundos e buscando novas fontes de abastecimento”.

A professora Yls Rabelo Câmara (Uece) acredita que integrar os conhecimentos dos profetas da chuva ao campo científico é essencial. “Apesar do risco de perda dessa tradição, a ciência tem muito a ganhar ao absorver essa sabedoria e a relação íntima que eles têm com os fenômenos naturais.”

Já o professor Cleiton Silveira (UFC) reconhece o valor cultural dos profetas, mas destaca a necessidade de validações científicas para políticas públicas. “A ausência de testes dificulta avaliar as previsões dos profetas e sua aplicabilidade na gestão pública. Enquanto a ciência trabalha com cenários probabilísticos, os profetas apresentam previsões determinísticas, como 'bom inverno' ou 'inverno ruim'.”

Ele destaca, no entanto, que “a colaboração fortalece a credibilidade da ciência, valoriza os cientistas e promove uma rica troca de visões sobre o clima.”

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