Na véspera do Dia de Reis, tradição e cultura popular se encontram na Estação
Encontro de gerações que mantém viva a cultura popular, edição do Ceará Ciclo Natalino 2024 chegou ao fim neste domingo, 5. Com o mote "Entre marchas e benditos: o Natal do Ceará ao som das cabaçais", evento homenageou o mestre Cícero Ribeiro, caririense de Missão Velha considerado tesouro vivo do EstadoAo som do pífano, cazumbás de bumba meu boi desfilavam com roupas coloridas e despertavam a alegria no coração de crianças e adultos na Gare do Complexo Cultural Estação das Artes, no Centro de Fortaleza, neste domingo, 5.
Véspera do Dia de Reis, o primeiro fim de semana do ano marcou o encerramento da XVII Mostra Estadual Ceará Ciclo Natalino 2024 — uma mistura de teatro, dança, música e fantasia que une gerações para manter viva a cultura popular cearense e festejar suas manifestações.
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A alegoria desses personagens místicos se misturou com o ritmo do tema “Entre marchas e benditos, o Natal do Ceará ao som das cabaçais” e deu vida à celebração, que reuniu 16 grupos natalinos de todo o Estado.
É o que explica Hildebrando Maciel, curador da mostra regional: “Essa mostra faz parte de um conjunto de ações da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult/CE) que são os editais de ciclo. A pasta trabalha em cima de quatro deles: o ciclo do Carnaval, da Semana Santa, o Junino e o Natalino. Essa ação faz parte de um projeto muito maior de valorização dos grupos de cultura tradicional e popular”.
“Originalmente, a gente fazia esse evento sempre no dia 6, mas a secretaria está compreendendo que o dia 6 é o dia dos grupos nos seus territórios. É um dia sagrado, então muitos têm seus quilombos, suas renovações, suas festas, e acabavam não conseguindo participar da festa aqui da Capital. Então a gente descentralizou e dividiu em dois dias para poder, inclusive, garantir um maior tempo de apresentação para eles”, aponta.
Hildebrando percebe um impacto financeiro de eventos como esse “que vai desde a costureira e aderecista até o motorista de ônibus”: “uma cadeia de profissionais que são mobilizados tanto lá quanto aqui para a realização dos eventos”.
“Para além disso, há uma dimensão simbólica que é a manutenção de uma celebração que é secular e se manifesta nas mais variadas formas. É um incentivo para garantir que essas tradições tenham espaço, visibilidade e se encontrem”.
Ele observa que a cultura tradicional popular e o patrimônio cultural imaterial "são experienciados". "Você só preserva isso garantindo que exista esse espaço de convivência. Se o mestre não repassa o saber, não se apresenta para o público, não constrói o traje, a tradição acaba se desfazendo e se perdendo com o tempo”.
Da identidade visual às ações, o tecido narrativo que conduziu o projeto, segundo o curador, procurou sair do lugar comum.
“O nosso Natal tem suas peculiaridades. Há toda uma dimensão da indústria cultural, da globalização, dessas referências estrangeiras que estão presentes pela própria dinâmica do mundo globalizado, mas ela coexiste com uma outra dimensão muito forte que é essa das tradições enraizadas no nosso território”.
Das terreiradas às ruas, mestre Cícero Ribeiro é coroado como tesouro vivo do Ceará
Das terreiradas às ruas, a mostra percorreu municípios como Meruoca, Monsenhor Tabosa, General Sampaio, Tarrafas, Russas, Baturité e bairros da periferia da Capital.
Mas foi em Missão Velha, no Cariri, que nasceu o homenageado dessa edição: exemplo de Mestre da Cultura que veste o artesanato e a ancestralidade do seu povo da cabeça aos pés, o pifeiro Cícero Ribeiro é considerado tesouro vivo do Ceará.
Guardião de uma herança cultural que já atravessa a 6ª geração da família, o Mestre é referência no repertório das bandas cabaçais e há 40 anos lidera a banda São José em sua terra natal. Fundado oficialmente em 1831, o grupo caminha para o bicentenário, com 194 anos de história familiar.
O mais novo integrante é o pequeno Antonio, de 4 anos, neto de Mestre Cícero. Apesar do tamanho, ele já domina alguns instrumentos musicais e sobe ao palco ao lado do avô e do pai, Francisco, numa troca de saberes que conecta a tradição e o contemporâneo.
“Essa história começou com meu bisavô, Manoel Ribeiro, que passou para o meu avô, João Ribeiro, depois meu pai, Francisco Ribeiro. Depois veio eu e assim foi, de geração em geração. Hoje está na sexta geração, que é meu neto, Antonio. Quando eu comecei a tocar era do tamanho dele. Comecei pequenininho também”, conta o mestre Cícero.
Francisco, que é filho de Cícero e pai de Antonio, explica que “em Missão Velha tinha mais de 200 bandas cabaçais e hoje só existe uma, que é essa. Infelizmente, muitas acabaram porque os mais velhos não ensinaram aos mais jovens. Nós não queremos que isso aconteça”.
“Quando entram novos membros na banda, a gente sempre trata de fazer amizade com eles, porque isso fortalece mais a continuidade”, reflete.
Para Vanildo Franco, integrante da banda, no Cariri há a tradição das renovações, onde a banda cultiva a vivência comunitária. "Nessa festa a gente passa o dia recebendo as pessoas e tocando. Começa com a alvorada às 6 da manhã, à noite a gente reza e encerra no terreiro. Isso faz com que a banda se fortaleça no ambiente em que ela existe, fortalecendo os vínculos familiares, os vínculos sociais”, observa.
Amigo, admirador e pesquisador do trabalho do grupo, Franco é fundador da Pifarada Urbana, que desenvolve formação da arte do pífano e realiza atividades aos domingos no Parque Rio Branco, em Fortaleza.
Sobre a banda cabaçal São José, ele projeta: “São quase 200 anos de uma cultura que é importante para a identidade daquele povo e daquele lugar, então a gente acredita que mantendo essa tradição, reunindo as pessoas, fazendo as danças e compondo as músicas, a gente se fortaleça por muito mais tempo”.
Encontro de gerações mantém viva a cultura popular
Conforme indica Jéssica Ohara, coordenadora de Patrimônio Cultural e Memória da Secult/CE, o evento é a culminância das atividades para promover um Natal diferente.
“É um momento que mostra como as comunidades e populações tradicionais veem esse ciclo, que tem muito a ver com a questão da colheita, com o trabalho no campo, com as brincadeiras populares. É uma forma de ver esse fim de ano e início de um novo ano também como um momento de preservação e difusão desse patrimônio imaterial”, frisa.
Ohara destaca a interação entre crianças e adultos, aparente nos encantos com a roupas coloridas e as apresentações.
“O que a gente também está tentando plantar é, na verdade, o sentido de relembrar essas crianças de que tipo de tradição elas fazem parte. De que tipo de sociedade, como a sociedade cearense se constituiu. E que essas expressões são partes, são elementos dessa constituição”, continua.
Para a coordenadora de Patrimônio Cultural e Memória da Secult/CE, ter a Mostra na Estação das Artes impacta nessa conexão entre grupos tradicionais e mestres com as crianças. "Mestres que, na sua maioria têm mais de 70 anos e estão há pelo menos 50 anos trabalhando com essas expressões, com essas crianças que um dia podem ser as pessoas que vão manter esse movimento vivo”.
O Dia de Reis, celebrado em 6 de janeiro, é uma festa católica que marca a tradição centenária na cultura popular brasileira de relembrar a viagem dos três reis magos para encontrar e homenagear Jesus. A celebração dura 12 dias e vai de 24 de dezembro até 6 de janeiro, data em que os reis chegam a Belém.
Artesanato, cultura e ancestralidade presentes também na economia criativa
Além dos grupos selecionados por processo curatorial, a mostra contou com apresentações de grupos de pastoril, bois, reisados, dramistas, lapinhas viva, presépio, fandangos, exposição de presépios e a exposição fotográfica “Cine Tradições Natalinas” na KUYA – Centro de Design do Ceará.
Como forma de incentivar e fomentar a economia criativa, o evento ainda destinou um espaço para a comercialização de produtos confeccionados por artesãos, artistas e agricultores cearenses.
Entre as feiras de empreendedores locais estavam a Feira da Cultura Negra, Feira da Agricultura Familiar e Feirinha dos Mestres.
O mestre João Pedro do Juazeiro, de Juazeiro do Norte, é xilógrafo, gravador e cordelista. Ele foi um dos expositores presentes na feira realizada durante o encerramento da mostra e acredita que “a cultura possui um brilho que atravessa gerações, obstáculos e empecilhos. É uma tradição hereditária que passa de pai para filho”.
Nas palavras dele, “a xilogravura e o cordel são formas de preservar a história e compartilhar a arte com o mundo. Eventos como esse dão visibilidade a quem faz esse trabalho”.
“Eu acho que a modernidade se baseia na tradição. Porque assim como o homem e a mulher nasceram do barro, as tradições também nascem”, contempla.
Confira galeria com imagens da festa de encerramento do Ceará Ciclo Natalino 2024 e celebração do Dia de Reis na Estação das Artes
Ceará Ciclo Natalino 2024
A XVII Mostra Estadual Ceará Ciclo Natalino 2024, promovida pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult/CE), contou com 14 mostras regionais distribuídas pelas macrorregiões do Estado, como Cariri, Grande Fortaleza e Sobral.
Os projetos participantes foram selecionados pelo XIX Edital Ceará Ciclo Natalino. Os grupos foram escolhidos por uma comissão de curadoria, que visitava cada uma das mostras.
Além disso, cada evento contou com o trabalho de pesquisadoras e pesquisadores que farão coleta de dados para qualificar a política de cultura tradicional popular.
A abertura aconteceu no dia 8 de dezembro em Missão Velha, terra natal do mestre Cícero Ribeiro, homenageado da edição.
No terreiro dele, além da banda cabaçal São José, apresentaram-se outras bandas cabaçais do Cariri: São Bento, do mestre Antônio; Santo Expedito, do mestre Expedito Cabôco; reisado de congo do mestre Aldenir.
Os grupos escolhidos em cada mostra apresentaram-se na XVII Mostra Estadual nos dias 4 e 5 de janeiro de 2025, no Complexo Cultural Estação das Artes, em celebração ao Dia de Reis.
A iniciativa busca promover e preservar tradições natalinas cearenses, como reisados, lapinhas vivas e presépios, além de valorizar grupos de projeção folclórica e culturas camponesas.
Confira aqui os grupos finalistas da XVII Mostra Estadual Ceará Ciclo Natalino 2024: Banda Cabaçal São José/ Mestre Cícero Ribeiro — Homenageado da Mostra, Boi Ceará (Fortaleza), Boi Coração Valente (Meruoca), Boi Juventude (Fortaleza), Boi Pai do Campo (Limoeiro do Norte), Caretas Bumba Meu Boi (Assaré), Grupo de Tradições Folclóricas Raízes Nordestinas (Fortaleza), Pastoril Estrela de Ouro (Canindé), Pastoril Grapel Estrela Luminosa (Fortaleza), Pastoril Mariinha da Ló (Paracuru), Pastoril Nossa Senhora de Fátima (Maracanaú), Pifara Urbana (Fortaleza) e Reisado Boi Coração (Ocara) e outros.