Pelo menos 8 mil processos penais devem ser reavaliados em mutirão da Justiça no Ceará
Iniciativa busca identificar detentos que já cumpriram requisitos para progressão de pena ou concessão de indultosPelo menos oito mil detentos do sistema prisional do Ceará terão suas penas reavaliadas durante a segunda edição do Mutirão Processual Penal da Justiça Cearense, que ocorrerá durante o mês de novembro em todo o Estado. A iniciativa é promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para identificar julgados que têm direito a benefícios mediante cumprimento de pré-requisitos legais.
Este ano, o mutirão irá se concentrar em analisar casos de pessoas que têm direito a indultos (extinção da pena) ou progressões de regime. No Ceará, a medida deve abranger um quinto dos mais de 36 mil presos do Estado, que terão as penas revisadas a partir de quesitos como comportamento, questões de saúde, tipo de crime cometido, entre outras situações.
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Um exemplo dos que têm direito a essa reavaliação são os presos com “incidentes vencidos”, ou seja, que já cumpriram parte da pena e ainda não tiveram os processos novamente analisados. A revisão é feita a partir de projeções de pena feitas pelo Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SIEEU), desenvolvido pelo CNJ.
“Quando vai atingindo determinados períodos de tempo, ele acende um alerta dizendo que aquela pessoa pode ter direito a uma progressão de regime, que ela já cumpriu toda a pena dela, ou que tem direito a um livramento condicional. A partir desse alerta, o juiz pegará e analisará o processo para verificar se esse alerta condiz de fato com a realidade”, explica o corregedor-geral de presídios da comarca de Fortaleza, juiz Raynes Viana.
Outros pontos a serem destacados são os casos de presos preventivamente há mais de um ano que ainda não foram julgados e os presos por tráfico de drogas antes da decisão de descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, tomada pelo Supremo Tribunal Federal.
De acordo com Viana, as prisões preventivas devem ser incluídas já neste mutirão, enquanto os processos por porte do entorpecente serão enquadrados no ano que vem, em datas ainda a definir.
Reanálise não garante soltura ou progressão de pena
Como ressaltado por Raynes, todos os processos apresentados durante o mutirão serão submetidos ao crivo de um juiz, que decidirá a favor ou não do detento. Em outras palavras, a análise representa apenas uma possibilidade para que o caso seja novamente avaliado, sem garantia de soltura, em caso de presos, ou extinção da pena, para pessoas em condicional.
Cerca de oito mil casos objetivos, ou seja, aqueles cujo os motivos de reanálise são identificados pelo SIEEU, já foram localizados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE). Além destas, situações subjetivas, como doenças graves, por exemplo, deverão ser apresentadas pela defesa dos condenados.
Dados da Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização do Estado (SAP), apontam que cerca de 22 mil pessoas estão reclusas atualmente em presídios do Ceará, enquanto outras 10 mil estão em liberdade condicional.
Homens e mulheres privadas de liberdade no Ceará
Segundo Raynes, que representa o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) do TJCE no mutirão, a maioria dos casos reavaliados deve ser de pessoas que já não estão mais no sistema carcerário.
“Não é esse o objetivo do poder judiciário. O objetivo do poder judiciário é garantir que esteja preso quem precisa estar preso e deve pela lei estar preso, e esteja solto quem tem direito a estar solto. Inclusive o escopo do mutirão não é só para pessoas presas. Na verdade, eu estimo que a grande maioria das pessoas atingidas pelo mutirão são pessoas que estão em liberdade”, conclui o magistrado.
Mutirão pode ajudar a combater a superlotação nos presídios
Privados de liberdade, muitos presos têm pouca ciência sobre o andamento de seus processos e condições penais. Dados do Censo Penitenciário do Ceará 2023 indicam que 45% dos presos não se encontraram com advogado nenhuma vez no ano de 2022, enquanto 26% tiveram apenas uma reunião com os defensores.
O estudo foi feito através de parceria entre a SAP e a Universidade Federal do Ceará (UFC).
Para a pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência da UFC (LEV-UFC), Fernanda Lobato, o mutirão do CNJ atua também para que esses detentos, que já pagam pelos crimes cometidos, não sofram com o esquecimento da Justiça.
“É muito importante que esse mutirão seja feito para que os processos sejam revisados e as pessoas tenham acesso à Justiça, a essa informação e ao andamento do seu processo. Que essa experiência prisional não se torne um esquecimento burocrático, afinal elas estão sendo responsabilizadas pelo o que estão sendo acusadas ou cometeram”, pontua a cientista social.
O mutirão também pode ser destacado como uma medida de enfrentamento à superlotação dos presídios cearenses. Por consequência da reavaliação dos casos, presos que não têm mais a obrigatoriedade de seguir encarcerados podem deixar as prisões.
Entre estes estão os presos preventivamente há mais de um ano que seguem sem definição de sentença. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 36% dos presos no Ceará estão em detenção provisória. Os dados são referentes a 2023.
“Existe um cenário histórico que se repete, de pessoas que ficam muito tempo privadas de sua liberdade sem ter o resultado do seu processo. Esse é um dos grandes problemas do sistema prisional e top-5 demandas das famílias”, comenta Lobato, que vê a necessidade de mais medidas como o mutirão.
“A gente tem um grande número de prisões, do uso da privação de liberdade como responsabilização. Ao mesmo tempo que a gente tem uma série de alternativas penais que precisam ser pensadas também para que a solução da responsabilização não seja só a privação de liberdade”, conclui a pesquisadora.