Maioria dos pedidos de 'interdição' de pessoas são ligados a saúde mental

Ceará registrou quase 18 mil ações judiciais de curatela protocoladas pela primeira vez em três anos, segundo dados do Tribunal de Justiça do Ceará

17:19 | Set. 29, 2024

Por: Jéssika Sisnando
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL 18-04-2024: Fotos fachada do Fórum Clóvis Beviláqua. (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo) (foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)

Entre 2021 e 2023, a Central de Atendimento de Estatísticas Processuais do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) registrou o ingresso de 17.904 ações judiciais protocoladas pela primeira vez em razão da interdição/curatela de pessoas. São, em média, 497 a cada mês.

Nos três primeiros meses deste ano foram 1.593 novas ações — 531 a cada 30 dias. As ações de interdição envolvem dramas familiares, que, na maioria das vezes, têm relação direta com problemas de saúde mental. A análise é do promotor de Justiça Eneas Romero, que atua na Defesa do Idoso e da Pessoa com Deficiência em Fortaleza.

A ação de curatela tem relação direta com a incapacidade do indivíduo para atos negociais da vida civil. Ou seja, é a situação de pessoas que possuem limitações que não as permite fazer atividades como, por exemplo, comprar um aparelho celular, realizar um empréstimo bancário ou realizar negociações de natureza civil.

Eneas Romero destaca que, apesar de ser mantido na lei, o termo "interdição" é pouco utilizado atualmente.

As ações judiciais, em tempos de inclusão, são excepcionalíssimas, a partir da premissa de que todas as pessoas são capazes. Neste tipo de ação, o curatelado é aquele que está sem capacidade para os atos negociais. Já o curador é a pessoa que se responsabiliza pelo curatelado.  

Entenda como são realizadas as ações de curatela

Romero cita o exemplo de uma pessoa com alzheimer e que, em razão da gravidade do quadro de saúde decorrente da doença degenerativa, deixa de possuir a capacidade para prestar um ato de natureza civil.  Nesta situação, a pessoa pede a curatela perante o juiz.

Todos os estados possuem varas especializadas para que o magistrado defina a curatela provisória ou a curatela definitiva — esta última para situações excepcionais.

Uma pessoa de 100 anos pode viver tranquilamente sem a curatela, ressalta o promotor. A questão não é relacionada à idade, mas à incapacidade. Pessoas que têm uma limitação que não é cognitiva exercem seus atos negociais sem a necessidade da curatela; por meio de procuração, por exemplo, é possível designar alguém para resolução de pendências de diferentes ordens. 

A interdição pode ser solicitada na Justiça por cônjuge, companheiro, companheira ou familiares. Em alguns casos o Ministério Público do Estado (MPCE) pode entrar com a ação e nomear alguém que tenha uma relação com a pessoa e dar a ela tal responsabilidade. 

Durante uma longa permanência em unidade para idosos ou unidades de acolhimento, o curador pode ser o diretor da entidade. "A responsabilidade de cuidar é da família, estado e também da sociedade", acrescenta. 

Promotor relembra caso no Rio de Janeiro

O promotor destaca que, muitas vezes, o MPCE recebe casos em que a própria família está causando o prejuízo para aquela pessoa. "O que acontece na prática é que o filho que está extorquindo a mãe e ela fica situação de penúria e fome", descreve. 

Um caso nacional que chamou atenção ocorreu em abril, dentro de agência bancária do Rio de Janeiro. Um idoso foi levado para o estabelecimento por uma sobrinha com o intuito de receber valores de um empréstimo. 

Os profissionais do banco, responsáveis pelo atendimento, perceberam que o homem, que estava em uma cadeira de rodas, não estava consciente. Ao acionar o socorro foi verificado que o idoso estava morto. O caso foi encaminhado à delegacia e a sobrinha foi presa. A defesa alegou que o homem havia morrido dentro da agência bancária. Tal imbróglio envolve situação de direitos civis. 

Para o promotor de Justiça, a mulher podia estar realizando uma extorsão ao levar o idoso, em situação de vulnerabilidade, para receber o empréstimo.  

Ações de curatela no Ceará (primeira protocolação)

  • 2019: 4.662
  • 2020: 2.245
  • 2021: 5.304
  • 2022: 6.165
  • 2023: 6.435
  • 2024: 1.593

Entenda em quais casos uma pessoa pode ser interditada 

Uma pessoa pode ser "interditada" em casos de saúde mental que causam a incapacidade, ou por deficiência grave que causa um risco aos atos civisquestões de dependência química que a pessoa gerou um nível de incapacidade para praticar atos negociais.

A lei diz que é possível interditar a pessoa pródiga — ou seja, uma pessoa que gasta e esbanja de modo desproporcional e que não tem capacidade de administrar os bens. "É importante que não se confunda a ação de curatela com o ato de retirar o direito e liberdade de fazer escolhas. A pessoa tem o direito de fazer as escolhas que ela quer", pontua.  

O drama da ruptura familiar 

Outras ocorrências que chegam com frequência ao MPCE são relacionados a ruptura familiar. Nestes casos, há uma pessoa que precisa de curatela para administração de bens.

"Esse é um grande drama. A mãe que cuidou do filho que tem deficiência múltipla a vida toda e a mãe falece. E essa pessoa precisa ser cuidada. Alguns recebem pensão ou BPC, mas, para receber os valores, precisam de curatela. Há casos em que a pessoa nomeada é um vizinho, alguém que criou um vínculo. Essas pessoas procuram o MPCE", ressalta o promotor de Justiça Eneas Romero.

O primeiro ponto para dar início ao processo é um laudo que mostre que a pessoa necessita de curatela e que a pessoa a ser nomeada é capaz de ser um curador.

Durante os trâmites, há uma oitiva da pessoa com deficiência. O Ministério Público tem cuidado nos casos, pois há indivíduos que querem ficar com o dinheiro da pessoa curatelada e acabam entrando com as ações.

No caso de desconfiança de que há uma pessoa explorando uma pessoa na situação de curatela, é possível fazer uma representação para o Núcleo do Idoso e Deficiência do MPCE. Ainda é possível denunciar crimes à Delegacia do Idoso e da Pessoa com Deficiência

Ações de interdição e benefícios previdenciários 

No caso de benefícios previdenciários, em regra, não é necessário que exista um termo de curatela. O advogado Matheus Saldanha, especialista em Direito Previdenciário, explica que não é necessário um termo de curatela para pedir concessão ou reestabelecimento ou até uma revisão de um benefício previdenciário. 

 Em caso de processo judicial referente ao benefício, durante o processo e após a perícia, o perito pode constatar que a pessoa é totalmente incapaz. A partir desta constatação, é necessária a nomeação de um curador. Alguns juízes nomeiam um curador no próprio processo. 

O advogado pontua que, se já é de conhecimento que a pessoa é incapaz e que em algum momento ela pode buscar um benefício, é importante ingressar com a ação antes para obter a curatela na Justiça. Nos casos de menores de 18 anos, por exemplo, não existe a necessidade de curatela: o tutor nato é o representante. 

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Administrativamente, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) possui um procedimento próprio que traz documentos e formulários específicos para facilitar a situação. Ainda de forma administrativa, o INSS pode exigir que a pessoa apresente o termo de curatela.

A finalidade é validar a legitimidade do curador. "Aconselho a ter o termo de curatela para evitar problemas futuros como obter o benefício", aponta. 

O advogado aponta que nem sempre é possível definir se a pessoa é totalmente incapaz. Em algumas situações, há tramitação do processo, mas, após a perícia médica, é constatada a total incapacidade. Assim, o próprio juiz pode nomear o curador.