Em busca da sombra: o legado do sertão na arquitetura bioclimática

No Ceará, os artifícios usados pelos sertanejos inspiram e são resgatados por meio de projetos

Um calor acachapante ao redor e no céu um sol quente escaldante. Mas para quem nasceu e cresceu no sertão, é de lei aprender a usar elementos e artifícios da região para buscar sombra e ventilação. O objetivo? Construir e transformar casas em verdadeiros “abrigos térmicos”. No Ceará, esse conhecimento sertanejo ancestral inspira e tem a memória resgatada por meio de modernos projetos de arquitetura bioclimática, importantes para amenizar efeitos das altas temperaturas.

A arquitetura do sertão é complexa e envolve o conhecimento da natureza e das paisagens naturais, além de ter em seu cerne disciplinas como geografia, história e paleontologia. Ela é expressão e patrimônio cultural. Está nas fazendas, nas casas de farinha e capelas, e nasceu fruto da necessidade dos sertanejos em caiar paredes, construir telhados e delimitar currais, usando os elementos que tinham à mão.

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Quem define o que é a arquitetura do sertão é o arquiteto e urbanista Romeu Duarte Júnior, colunista do O POVO. Ele é ainda ex-presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Ceará e recentemente foi nomeado para ocupar a cadeira de Liberal de Castro no Instituto Histórico do Estado.

“É justamente de autoria do arquiteto e professor Liberal de Castro um dos melhores textos sobre o assunto, escrito com muita delicadeza em ‘Pequena informação relativa à arquitetura antiga no Ceará’”, indica.

Romeu afirma que esse tipo de arquitetura está se extinguindo no Estado. “Há poucos remanescentes do século 19 na Capital por conta da desvalorização e desconhecimento sobre o que ela significa. As propriedades vão se transformando, por conta das heranças, e não são vistas como algo de valor. Logo, elas são demolidas", aponta.

Arquiteto cita a Chácara Salubre, no bairro Antônio Bezerra, em Fortaleza, como exemplo de obra original que ainda resiste a essas transformações. Duarte destaca ainda mais casos conhecidos de arquitetura do sertão na Capital e em municípios do Interior, como a Casa de José de Alencar, centro cultural pertencente à Universidade Federal do Ceará (UFC) e onde o romancista brasileiro nasceu. 

Apesar desse apagamento progressivo, o trabalho realizado pelos sertanejos ainda se faz vivo por meio de artifícios que outrora eles aprenderem a usar para promover frescor e ventilação nas casas. Dentre eles está o pé direito alto (quando a medida mínima de distância entre o chão e o teto é de 3 metros), o cobogó (tijolo perfurado ou elemento vazado), ou ainda o uso de vegetação para buscar a sombra.

Renan Cid Varela Leite, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, lista como boas práticas arquitetônicas no sertão: "A proteção solar com varandas e beirais, a utilização de materiais mais pesados como a taipa, a alvenaria com maior espessura e as poucas e reduzidas aberturas da construção para evitar ganhos de calor e o ingresso de ventos quentes durante o dia no interior da edificação".

Conforto térmico e sustentabilidade

Questionado sobre a interseção entre as arquiteturas do sertão e a bioclimática, o que inevitavelmente remete a um encontro entre tradição e modernidade, Renan Cid diz que a arquitetura dos nossos antepassados dos séculos 18 e 19 ainda se mantém pertinente, inclusive sendo utilizada em escritórios reconhecidos.

“A proposta de ambas as técnicas é a mesma, ou seja, conceber edificações baseando-se no clima local, de forma a proporcionar conforto térmico, aproveitando fontes ambientais”, elenca.

"Importante ressaltar que há uma diferença entre a arquitetura do sertão e a do litoral, apesar de ambas serem bioclimáticas. As construções do sertão, por exemplo, possuem paredes mais espessas porque a amplitude térmica do ambiente é maior, ou seja, a variação da temperatura é grande durante o dia. Já a arquitetura do litoral é de paredes mais finas, com muitas entradas e saídas de vento, dada a amplitude térmica menor e a umidade maior", ressalva também.

Em Juazeiro do Norte, no sertão cearense, uma família de arquitetos tem atuado para adaptar edifícios ao clima. Juntos no comando do Lins Arquitetos Associados, quatro profissionais são responsáveis por projetos que buscam oferecer conforto térmico e sustentabilidade.

De acordo com Cintia Lins, sócia diretora do escritório, a empresa tem como propósito priorizar o clima local, trazendo e executando estratégias que ajudem a amenizar o calor, dentre outros quesitos. Para isso, são utilizados artifícios como técnicas de ventilação cruzada.

Além disso, profissionais buscam diminuir a utilização de recursos energéticos, como ar condicionados, usando materiais disponíveis na região, o que reduz os custos.

“A arquitetura bioclimática é muito presente no nosso escritório. É a base da nossa arquitetura. Deveria ser a de todo mundo, na verdade. A gente acredita que toda arquitetura tem que ser sustentável”, destaca Lins.

Um resgate da memória

Além de trazer conforto térmico e promover sustentabilidade, o uso desses elementos na arquitetura resgatam e valorizam a história sertaneja. É uma forma de reconhecer e manter viva a memória dos homens que, movidos pela necessidade, souberam olhar com inteligência— e delicadeza, para os espaços que pertenciam.

No escritório Lins Arquitetos, a valorização ocorre principalmente na escolha dos materiais usados. Segundo Cintia Lins, a empresa costuma utilizar elementos como tijolos de olaria, pedras da região e alvenaria convencional. Preferência na hora de encomendar os artifícios também é regional. Prova disso são os ladrilhos hidráulicos encomendados para o Seu Jaime, mestre artesão que atua no Cariri cearense.

"A questão cultural é muito forte (...) A gente tem muito orgulho do local que a gente tá, de ser sertanejo. A gente quer sempre valorizar a cultura local, a gente quer valorizar o local que a gente tá. Isso também é uma decisão política", destaca a arquiteta e urbanista.

Esse desejo foi materializado nos projetos da empresa, como a Academia-Escola Unileão. O projeto traz elementos que rebuscam ao sertão, como o uso de cobogó para trazer ventilação ao espaço. Obra é feita por blocos maciços de cerâmica vermelha, com espaçamentos que permitem a entrada de ar e luz.

Construção localizada em Juazeiro do Norte venceu o prêmio de Arquitetura Tomie Ohtake Akzonobel em 2020, que "busca mapear e reconhecer produções arquitetônicas contemporâneas que englobam formas inovadoras de pensar, produzir, transmitir e transformar espacialidades, inclusive socioculturais". Produção colocou o Ceará como destaque na arquitetura brasileira contemporânea. 

"A grande estratégia que nos une ao sertanejo é a busca pela sombra, seja ela vegetal, de uma árvore, seja ela de uma grande coberta, seja ela com elemento vazado ou cobogó para filtrar a luz, mas é a busca de um abrigo sombreado e confortável termicamente", destaca a representante da família Lins. 

Veja exemplos de arquitetura do litoral e do sertão no Ceará:


 

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