Facção criminosa no Ceará: quando esses grupos fizeram pactos entre si

Embora negados pela SSPDS, as facções criminosas estabeleceram acordos entre si, pelo menos, duas vezes, em 2015-2016 e em 2019

As facções criminosas que atuam no Ceará vivem em guerra, mas, em momentos pontuais, estabeleceram acordos entre si que amenizaram os confrontos e, consequentemente, reduziram os números de homicídio — embora esses pactos nunca tenham sido reconhecidos pelas gestões da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) quando ocorreram.

Esses pactos foram registrados em, pelo menos, dois momentos: em 2015-2016 e 2019. Em mais uma matéria que traz informações sobre a atuação das facções no Ceará, O POVO detalha agora as motivações dos acordos e como elas ocorreram.

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Pacificação entre facções

Ao expandir o “batismo” de novos integrantes no Estado, em meados de 2015, as principais facções criminosas do Sudeste, Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC), traziam um discurso de união entre os criminosos, o que ocorria também com a recém-criada Guardiões do Estado (GDE).

Um dos primeiros relatos dessa movimentação foi feito pelo colunista de Segurança Pública de O POVO Ricardo Moura, em uma coluna de agosto de 2015. Com base no depoimento de três policiais, o jornalista e sociólogo afirmava que chefes do tráfico de drogas de Fortaleza estavam se organizando.

Um desses episódios foi um encontro que reuniu criminosos de mais de 20 comunidades. “Estaria havendo uma espécie de ‘paz consentida’ entre os traficantes para empregar a expressão de um amigo que vivencia de perto a violência urbana”, escreveu o colunista.

Outras matérias do O POVO também acompanharam esse processo, que passaram a não mais se restringir a acordos feitos na penumbra. Em janeiro de 2016, o repórter Thiago Paiva mostrava que passeatas e grandes queimas de fogo estavam sendo usadas para “celebrar a paz” em bairros como Vila Velha, Meireles, Vicente Pinzón, Aldeota, Panamericano, Lagoa Redonda, Sapiranga, Conjunto Palmeiras e Pedras.

Dias depois, reportagem de Demitri Túlio mostrava outros bairros onde a “paz” havia sido firmada. Um líder comunitário da Sapiranga explicava que, com a nova ordem, moradores poderiam circular livremente por áreas que antes não podiam andar devido à atuação de criminosos rivais. “Não tem mais guerra, mortes e roubo. E se for pego roubando, apanha de pau”, comentou um outro morador do bairro.

A passeata realizada no Vicente Pinzón foi alvo de uma operação do Ministério Público Estadual (MPCE) batizada de "Vera Pax". Conforme relatório do 9º Distrito Policial, a manifestação chegou a contar com cerca de 200 participantes. Mensagens encontradas no celular de uma pessoa que teria participado da passeata deixava claro o objetivo do movimento:

 

As celebrações também se deram na Região Metropolitana de Fortaleza e no Interior. Em Sobral, na região Norte do Estado, uma dessas caminhadas resultou na detenção de 47 adultos e na apreensão de 40 adolescentes, posteriormente liberados.

Paralelamente, os homicídios caíram no Estado, a primeira vez em 17 anos. Em 2014, 4.439 homicídios haviam sido registrados no Estado. Em 2015, esse número foi de 4.019, ou seja, uma redução de 9,5%. Em 2016, 3.407 homicídios ocorreram, 15,2% a menos que em 2015. Os números de Fortaleza eram ainda melhores: em 2015, 1.651 assassinatos; em 2016, 1.007 — ou seja, redução de 39%.

O então titular da SSPDS, o delegado federal Delci Teixeira, negava que as diminuições teriam sido causadas pelo acordo entre as facções. “A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) desconhece esse ‘acordo’ que teria sido realizado entre facções criminosas”, afirmou, por meio de assessoria de imprensa, em janeiro de 2016.

A trégua de 2019

Com o rompimento nacional de CV e PCC, a “pacificação” entre as facções no Ceará acabou ainda no fim de 2016. Os dois anos seguintes seriam os mais violentos já registrados no Estado: em 2017, foram 5.133 homicídios, e, em 2018, 4.518. Então aliada do PCC, a GDE estava em um bloco que se contrapunha ao CV e à Família do Norte (FDN), que até então mantinham parceria.

A guerra entre as facções cessou em 2019, a partir da chegada do secretário Mauro Albuquerque para a recém-criada Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Inconformadas com a decisão, já que Albuquerque era conhecido pelo rígido regime que impunha nas unidades, as facções se uniram naquela que foi a maior onda de ataques da história do Estado: foram 443 atentados durante o mês de janeiro em diversos municípios do Estado.

Um dos principais temores dos presos era de que o princípio de Mauro Albuquerque de não reconhecer facções fizesse com que detentos de organizações rivais fossem colocados nos mesmos espaços, causando conflitos e mortes. Por isso, os grupos estabeleceram um acordo de trégua.

Uma das evidências desse pacto foi encontrada pela Polícia Federal (PF) durante a operação "Reino de Aragão", deflagrada em dezembro de 2019. Em mensagens com as quais os policiais se depararam em grupos de Whatsapp da GDE, a trégua é mencionada diversas vezes, embora sempre com a ressalva de que se tratava de um momento passageiro e não de uma “paz” como a de 2015-2016.

“A trégua era momento exato para parar e focar, e se focar e se fortalecer com bala, com colete, com armamento…”, diz uma integrante da GDE. "...Pois nós ja soltamos salve, né, a respeito disso. Trégua não é paz", diz ela em outro momento.

A inteligência da SAP chegou a reconhecer a trégua, mas afirmava que o acordo só ocorreu entre junho e setembro de 2019, conforme dito no Relatório de Inteligência nº 155/2021/Coint/SAP. 

De acordo com o relatório, a trégua tinha como “objetivo principal” um plano de resgate de lideranças de ambas as facções presas no Centro de Detenção Provisoria (CDP), em Aquiraz (Região Metropolitana de Fortaleza). O plano não foi para frente, pois foi descoberto a partir da apreensão de bilhetes encontrados com um advogado logo após visita a um preso.

O ano de 2019 foi o menos violento no Estado em uma década. Foram 2.257 homicídios, metade do registrado no ano anterior. Por diversas ocasiões, o então secretário André Costa negou a existência de um acordo e creditou a redução ao trabalho das forças de segurança. "Não precisa ser especialista para responder à seguinte pergunta: você faria acordo com quem matou sua esposa, seu pai, sua irmã ou seu filho? A resposta é óbvia demais", publicou, em uma dessas ocasiões, em sua conta no Instagram.

Seu sucessor, Sandro Caron, porém, reconheceu publicamente a existência da trégua. A O POVO, ele afirmou que, quando houve a reorganização do sistema prisional feita por Mauro Albuquerque, os criminosos tiveram de parar de brigar entre si “para tentar retomar o controle da cadeia de comando”.

A trégua, porém, acabou em 2020, com a paralisação da Polícia Militar e com a pandemia. Neste ano, os homicídios cresceram 78,95% em relação a 2019. Nos anos seguintes, porém, houve queda — desta vez, sem registro de acordos entre facções.

Em 2021, ocorreram 3.299 homicídios no Estado; em 2022, 2.970. Neste ano, no primeiro semestre, foram registrados 1.377 assassinatos, redução de 7% em relação ao mesmo período do ano passado.

Facção criminosa no Ceará

Esta matéria faz parte de uma série especial do O POVO que deslinda a atuação das facções no Estado. Nas próximas semanas, novas matérias sobre outras questões ligadas a esses grupos serão publicadas.

Leia a três primeiras matérias publicadas da série: Facção Criminosa no Ceará: quais grupos atuam no Estado?, Facção criminosa no Ceará: como se organizam os grupos no Estado?Facção no Ceará: batismos, caixinhas e tribunais; como os grupos atuam.

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