Facção no Ceará: batismos, caixinhas e tribunais; como os grupos atuam

Na 3ª matéria da série sobre facção no Ceará, O POVO mostra artifícios usados por esses grupos para manter o poder paralelo e aterrorizar a população

22:47 | Jul. 31, 2023

Por: Lucas Barbosa
A nova configuração pelo domínio do tráfico causou impacto nos número de CVLIs (foto: Mateus Dantas em 14/02/2019)

Há todo um ritual e códigos de conduta que as facções criminosas que atuam no Ceará esperam que seus membros sigam. Dentro dele, existe até uma espécie de dialeto próprio. Começa ao entrar, com o “batismo”, e prossegue, já enquanto faccionados, quando precisam honrar um sistema normativo determinado, entre outros, por “salves” e “estatutos”.

Eles precisam pagar uma “caixinha” e, caso descumpram alguma regra, podem vir a ser submetidos a um “tribunal do crime”. Até mesmo para deixar a facção, é preciso seguir um ritual: ele ou ela deverá comunicar a algum superior hierárquico do grupo criminoso que entrou na “benção”, ou seja, submeteu-se a uma conversão religiosa — única hipótese em que a saída é permitida.

Daí, então, fará um vídeo “entregando a camisa” da facção, que irá circular em redes sociais de criminosos. Ainda assim, será monitorado para que seja certificado que, de fato, ele está tendo uma vida religiosa. 

Depois de mostrar quais são as facções que atuam no Estado e como elas se estruturam por aqui, O POVO preparou um pequeno guia para mostrar como funcionam os “regimentos” da vida no crime, na terceira matéria da série que mostra como agem as facções criminosas no Ceará. Confira:

Primeiro passo na facção: Batismo

O batismo, como já dito, é a porta de entrada da facção. Sem o batismo, o indivíduo pode até “correr” com a facção — fazendo tarefas a seu mando —, mas será considerado apenas um “simpatizante” do grupo. Ele é “brecado”, ou seja, impedido de exercer algumas atividades e, dificilmente, irá ascender na hierarquia do crime.

O discurso das facções diz que, para integrar tais organizações, é preciso demonstrar lealdade ao grupo e não ter “furos” no crime. Em depoimento ao qual O POVO teve acesso, um homem autuado por integrar a Guardiões do Estado (GDE) exemplificou o que poderia vetar o ingresso na facção: “Roubar na área e estuprar, além de bater em mãe ou roubar ônibus”.

Como fiador da “probidade criminosa" do novo faccionado aparece a figura do padrinho, um membro antigo da facção que indica ou se “responsabiliza” pelo neófito. Caso este novo integrante venha a praticar algo considerado errado pela facção, o padrinho pode vir também a ser punido.

Na maioria das facções, basta um padrinho para que o batismo ocorra. No livro A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, os pesquisadores Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias afirmam que o Primeiro Comando da Capital (PCC), buscando ampliar sua atuação pelo País, reduziu a exigência de três padrinhos que um novo integrante deveria ter para apenas um.

Há ainda casos em que é cobrado o cumprimento de uma “missão” para o ingresso na facção. Essa exigência é requerida, sobretudo, para aqueles que já pertenceram a um grupo rival. Nesses casos, na maioria das vezes, é exigido o assassinato de um integrante da antiga organização do candidato.

O ingresso em uma facção também pode se dar por meio das redes sociais, sobretudo, o WhatsApp. Nesse caso, o ex-titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), Harley Filho, explicou, em sua monografia, tomando como exemplo a GDE, ser preciso apresentar foto, nome, data de nascimento, vulgo de batismo, padrinhos e “quebrada” (local de atuação).

A imagem com todas essas informações é conhecida como “cara-crachá”. “Em seguida, essa foto é encaminhada para o setor de análise e batismo”, afirma Harley. “Caso nenhum membro se oponha, o candidato fará a leitura do ‘estatuto’ do GDE, bem como o juramento de aceitar cumprir o que estiver nessa cartilha. Depois disso, será oficialmente membro da GDE”. Ou seja, torna-se um “irmão”.

Os Estatutos das facções criminosas no Ceará

Os “estatutos” das facções, por sua vez, são peças que condensam os valores morais supostamente prezados pelo grupo e exigido de seus integrantes. As três maiores facções do Estado (Comando Vermelho — CV, GDE e PCC) têm essa espécie de regime interno, enquanto no caso da Massa Carcerária (Neutros ou TDN), O POVO ainda não tomou conhecimento de texto semelhante.

De maneira geral, os estatutos são bastante similares entre si. Neles, as facções dizem lutar contra a “opressão”, seja do Estado, seja dos inimigos, defendem a “justiça” e “igualdade” entre os integrantes, de quem cobram lealdade e retidão dentro dos preceitos do crime. Além disso, são listadas práticas que podem acarretar em punição, como delações, crimes sexuais, atos de “talaricagem” e apoderamento de bens dos "irmãos".

Confira os estatutos de CV, GDE e PCC:


 

Salves e decretos das facções criminosas

Os salves são textos elaborados por faccionados graduados na hierarquia das facções. Esses textos trazem informações ou determinações desses grupos, seja para seus membros, seja para a população em geral.

A internet, sobretudo, aplicativos de troca de mensagem, é a principal forma de veiculação dessas mensagens.

De maneira similar, os “decretos” das facções trazem ordens para assassinatos. Normalmente, essas mensagens ameaçadoras são acompanhadas de fotos das vítimas.

Caixinhas das facções no Ceará

Entre as obrigações impostas a seus integrantes, as facções exigem o pagamento periódico de uma contribuição financeira, a chamada “caixinha”. Geralmente, são pagas em valores que variam entre 50 e 150 reais; na operação Annulare, um salve dizia que os donos de “biqueiras” (pontos de vendas de drogas) do CV deveriam pagar R$ 250. Em março de 2019, o relatório de nº 177/2019 da Draco afirma que a GDE obteve um faturamento de R$ 72 mil apenas com os valores da caixinha.

As contribuições são, em tese, usadas em benefícios dos próprios faccionados, como no pagamento de advogados e outras despesas quando são presos — sobretudo, para aqueles que vão para os presídios federais.

Em investigação da Draco, baseada em mensagens extraídas de celulares de integrantes da cúpula da GDE, a esposa de um dos chefes da facção enviados a um presídio federal aparece falando que a “família” estava enviando R$ 1.500 mensais para ela “resolver as coisas” do marido e de um cunhado.

Na prática, porém, o emprego do dinheiro é mais nebuloso. Não raro, faccionados menos graduados aparecem reclamando de falta de amparo por parte das facções — essa, inclusive, é uma das motivações citadas para o racha registrado no CV em 2021. Para as forças de segurança, as caixinhas são uma espécie de “esquema de pirâmide”, que só beneficia quem está no topo.

Na operação Reino de Aragão, deflagrada em 2019 pela Polícia Federal (PF), foi encontrada uma mensagem em que um integrante da GDE dizia que os “conselheiros” do PCC ganhavam R$ 12 mil para ocupar a função, dinheiro oriundo da caixinha.

Caso não paguem, os faccionados podem ser “brecados”, isso é, impedido de vender drogas ou desenvolver qualquer atividade criminosa que dependa dos recursos da facção.

Tribunais do Crime no Ceará

Desobedecer o ordenamento imposto pelas facções pode levar o “infrator” a ser submetido a um “Tribunal do Crime”. Como o nome já deixa claro, trata-se de uma espécie de julgamento para ocorrências consideradas erradas pelas facções. A pena máxima é a morte, mas há outras formas de punição, que podem incluir surras ou ser expulso de casa.

A prática é disseminada por todas as facções que atuam no Estado. Em muitas regiões, assassinatos só ocorrem após autorização do chefe da facção na localidade. No PCC, porém, o processo parece ter sido ainda mais complexificado. Mostra disso é um episódio ocorrido em 2017 em que uma mulher foi submetida a um tribunal do crime da facção paulista.

Ela era acusada de ter participado do assassinato de um outro membro da facção, identificado como Geovane do Nascimento Bernardino, encontrado decapitado em um matagal entre os bairros José Walter e Conjunto Palmeiras, em Fortaleza. Diante da acusação, ela se viu, conforme denúncia do Ministério Público Estadual (MPCE), diante do “Resumo da Disciplina” da facção.

Consta na denúncia que, para “formular sua defesa”, a vítima solicitou que duas integrantes da facção fossem com ela até Pacatuba (Região Metropolitana de Fortaleza), onde teria ocorrido o homicídio, para a “reconstituição” do crime, “com posterior envio de um relatório para o ‘RESUMO DA DISCIPLINA’, por meio de áudios e vídeos”.

Enquanto aguardava o julgamento, a vítima foi posta em uma espécie de prisão preventiva, em apartamento na Praia do Icaraí, em Caucaia (Região Metropolitana de Fortaleza), vigiada por dois faccionados.

“Ainda consoante à peça inaugural, e de acordo com as declarações da vítima, os irmãos ‘FEDERAL’ e RAIMUNDO LAURINDO, vulgo ‘RDM’, com funções de "Apoio da Externa"; ‘PANDA’, com função de ‘Geral da Rua’; e MARCOS GREGÓRIO, vulgo ‘ITAÓCA’, e ‘JET’, da unidade CPPL III, compunham o núcleo ‘ESCLARECIMENTO DE IDEIAS’ do sistema masculino e tinham como função ouvir as declarações da vítima e realizar questionamentos", diz a denúncia do MPCE.

"Por sua vez, as denunciadas JEANE SOUSA, vulgo CANINANA e FRANCISCA PAULA, vulgo CRISTAL, eram as responsáveis pelo “RESUMO FEMININO" e ficavam o tempo todo instigando que fosse dado o ‘pau no gato’, ou seja, que a vítima fosse executada”.

As opiniões desses dois núcleos foram submetidas à avaliação de um terceiro quadro da organização criminosa, denominado “‘Apoio do Resumo Disciplinar”. Aparentemente, o veredicto desta célula do PCC foi favorável à vítima, que foi deixada em um uma barraca de praia e pôde, enfim, ver-se livre do cárcere a qual foi submetida.

A Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), porém, tomou conhecimento do sumiço da vítima e realizou operação que levou à prisão dos acusados. Quatro pessoas foram sentenciadas por participação no “Tribunal do Tráfico”.

Esta matéria faz parte de uma série especial do O POVO que deslinda a atuação das facções no Estado. Nas próximas semanas, novas matérias sobre outras questões ligadas a esses grupos serão publicadas.

Leia a primeira e a segunda matérias publicadas da série: Facção Criminosa no Ceará: quais grupos atuam no Estado? e Facção criminosa no Ceará: como se organizam os grupos no Estado?