Conheça detalhes do elo entre facção e "jogo do bicho" desvelado em investigação

Operação prendeu sócios da Loteria do Povo e membros do Comando Vermelho que teriam feito complô contra casas de jogos rivais. Defesa diz que suspeitas são fomentadas por desafetos e concorrentes

“Salves”, longas conversas por meio de aplicativos, idas ao Rio de Janeiro, ataques a bancas rivais. Os autos do processo da operação Saturnália, obtidos por O POVO, detalham a relação entre chefes da facção criminosa Comando Vermelho (CV) e os proprietários da Loteria do Povo. Ao todo, quatro sócios e dois gerentes da loteria foram presos pela Polícia Civil suspeitos de firmar um acordo milionário com o CV — só a facção embolsaria R$ 1 milhão por mês. Defesa diz que prisão são desnecessárias e suspeitas são fomentadas por desafetos e concorrentes.

As investigações das delegacias de Repressão às Ações Criminosas Organizadas do Ceará (Draco) e de Combate aos Crimes de Lavagem de Dinheiro (DCLD) começam mostrando que o Comando Vermelho passou a emitir, em 2021, “salves” — isso é, mensagens com ordens para seus integrantes — com o intuito de “brecar” (paralisar à força) as atividades de casas que exploram jogos de azar.

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O primeiro salve data de 21 de setembro de 2021. Em um mês, outras cinco mensagens do tipo seriam divulgadas. Os investigadores perceberam que, a partir do segundo salve, a Loteria do Povo, citada junto com várias outras no primeiro comunicado, deixou de ser mencionada pela facção. E, no quinto salve, constava que “quem quiser trabalhar” deveria ir “para banca do povo”.

“Referida ordem fez com que se ampliasse a rede de atuação da Loteria do Povo e, consequentemente, o lucro de seus sócios”, assinala a investigação. Em outubro, os investigadores apontam que a Loteria do Povo ainda se fortaleceu em uma fusão com a Loteria Gomes.

Paralelo à divulgação dos salves, a Polícia Civil tomou conhecimento de que diversos ataques a bancas de jogos estavam sendo realizados. Nas ações, os criminosos não só roubavam os cambistas, descreve a investigação, como também tomavam as máquinas onde os jogos eram feitos. Eles ainda faziam questão de anunciar que somente a Loteria do Povo tinha autorização para atuar naquela região. 

Em representação à Polícia Civil, somente uma casa de jogos menciona ter feito seis boletins de ocorrência relatando ataques a suas bancas entre 21 de setembro e 22 de novembro.

Interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça aprofundaram as ligações entre o Comando Vermelho e a Loteria do Povo. Os investigadores notaram que, nas agendas telefônicas de homens apontados como lideranças do CV, havia contatos de pessoas ligadas às loterias.

A Polícia Civil apontou Márcio José de Lima Souto, conhecido como "Chapo", como o homem responsável pelo elo entre a cúpula do CV no Estado e os bicheiros. As investigações mostram que Márcio ficou mais de três horas e meia em uma ligação com Douglas Honorato Alves, que é apontado como a maior liderança do CV no Estado ainda em liberdade. Três horas antes, ainda conforme os autos, Márcio estava em contato com João Victor Feitosa Rodrigues Rebouças, integrante do quadro societário da Loteria do Povo.

“O maior interlocutor de Márcio Souto (no terminal [número do telefone]) é João Victor Feitosa Rodrigues Rebouças (sócio da Loteria do Povo, no início desta operação), com 922 interlocuções individuais no Whatsapp, no período interceptado, (sem contar com as comunicações em grupo). Ressalte-se que tal número é muito superior ao segundo maior contato, [número do telefone] pertencente à esposa de Márcio Souto”, destaca a operação.

Douglas Honorato ainda aparece nas interceptações como voz ativa no ataque a bancas rivais. Em uma das mensagens captadas, ele ordena, taxativamente, que o dono de uma banca encerre suas atividades. “Mano já mandei fechar tudo aí”, diz. Em uma conversa, um comparsa, identificado como Alisson Robério Morais Pereira, diz a Douglas que "já tem banca fechada, só esperando a banca do povo 'botar lá'", ou seja, fornecer as máquinas para os cambistas migrarem para a Loteria do Povo e voltarem a vender seus jogos.

Durante o desenrolar da operação, após diversas matérias na imprensa noticiarem a aliança entre a facção e o jogo do bicho, o quadro societário da Loteria do Povo se desfez. Segundo a Polícia Civil, foi uma manobra para ocultar o real comando da loteria. Prova disso, aponta a investigação, é que os reais proprietários da casa, Paulo Laércio Bastos Gomes e João Victor, continuaram frequentando a sede da empresa, conforme atestado pelos dados das Estações Rádio Base (ERB) de seus celulares.

Uma testemunha, funcionária da Loteria do Povo, ainda afirmou à Polícia Civil que sócios da Loteria do Povo/Gomes foram até o Rio de Janeiro, onde estaria refugiado Douglas Honorato, para estabelecer o acordo entre a loteria e a facção. Em depoimento, a testemunha afirmou que “[...] na área do CV os proprietários são obrigados a repassar 20% dos rendimentos para a facção CV [...] Inicialmente, esta obrigação ocorria apenas na capital Fortaleza, porém, logo em seguida espalhou-se para todo o Estado do Ceará”.

“Inegável que os elementos carreados aos autos indicam importante esquema criminoso ofensivo às ordens pública e econômica, uma vez que os vultuosos valores movimentados pelos investigados são oriundos do acordo espúrio entre as Loterias Líder da Sorte (do Povo)/Gomes e o Comando Vermelho, sendo fruto de extorsões contra a concorrência e servindo para o financiamento da organização criminosa em alusão, além dos envolvidos atuarem na prática do jogo do bicho, contravenção penal e lavagem de dinheiro”, afirmou o Ministério Público Estadual (MPCE) ao pedir o bloqueio de contas bancárias e o sequestro de veículos dos alvos da operação.

Saiba quem são os alvos da operação Saturnália e as acusações que pesam contra eles:

Márcio José de Lima Souto, o Chapo
"Articulador entre os dois núcleos da aliança formada entre Loteria do Povo e Comando Vermelho". Foi preso.

João Victor Feitosa Rodrigues Rebouças
"Atua à frente da Loteria do Povo, é quem repassa as diretrizes da Loteria para o Comando Vermelho, com intermédio de Márcio José de Lima Souto". Foi preso.

Leonardo Aragão Bernardo
"Advogado, atua no jogo do bicho em Itapipoca e em Tururu e possui estreito vínculo com o Comando Vermelho, sendo responsável pela comunicação entre membros da organização criminosa que se encontram presos e membros que estão em liberdade, valendo-se de sua condição de advogado para possibilitar o encaminhamento de diretrizes da facção para fora do presídio".

Marco Antônio Bastos Gomes
"Ex-responsável legal da Loteria do Povo, desvinculando-se apenas após a aliança firmada com a facção em comento, porquanto, as investigações apontam que Marco Antônio continua como responsável de fato da Loteria do Povo". Foi preso.

Paulo Laércio Bastos Gomes
"É ex-sócio da Loteria do Povo, desvinculando-se apenas após a aliança firmada com a facção em comento, todavia, as investigações apontam que Paulo Laércio continua exercendo a gerência da Loteria do Povo". Foi preso.

Douglas Honorato Alves, o DG
"É líder do Comando Vermelho, passando a ocupar tal posição após a prisão de Max Miliano Machado da Silva e está foragido no estado do Rio de Janeiro. Depreende-se das investigações que foi DG quem emanou as ordens para o fechamento das demais Loterias instaladas nas localidades sob o domínio do CV, e posteriormente, firmou acordo com a Loteria do Povo. Por óbvio, DG atua ainda no tráfico ilícito de drogas e armas".

Paulo Roberto Soares Sampaio
"Já responde por homicídio, associação criminosa, porte irregular de arma de fogo, ameaça e receptação, é membro do Comando Vermelho e atua no município de São Gonçalo do Amarante, 'trabalhando' no financeiro da Loteria do Povo". Foi preso.

Alisson Robério Morais Pereira, o Mourão Guanabara
"Membro do Comando Vermelho, subordinado a Douglas/DG responsável por cumprir as ordens deste para o fechamento das demais Loterias concorrentes". Foi preso.

Fonte: Pedido de Prisão Preventiva feito pelo MPCE

O que dizem as defesas

Procurado pelo O POVO, o advogado Leandro Vasques, que representa os irmãos Marco Antônio e Paulo Laércio Bastos Gomes e João Victor Feitosa, afirmou que as prisões de seus clientes são “absolutamente desnecessárias” e que as suspeitas que recaem sobre eles são “fomentadas por desafetos e concorrentes”.

Confira a declaração na íntegra:


A defesa ainda está se inteirando de todo o conteúdo dos autos, bem como buscando compreender a relação de cada um dos nossos três constituintes com o contexto fático sob apuração. Contudo, não obstante o elevado respeito que se nutre pela Polícia Civil e pelo Poder Judiciário, já se pode adiantar que a prisão preventiva estabelecida é absolutamente desnecessária, uma vez que as diligências de busca e apreensão realizadas coletaram os elementos informativos considerados úteis à elucidação dos fatos, além de terem sido bloqueados diversos bens dos investigados.

De todo modo, nossos constituintes já foram interrogados e prestaram relevantes esclarecimentos à Autoridade Policial, os quais serão aprofundados doravante pela atuação da defesa e revelarão que as suspeitas que ainda recaem sobre si decorrem de incompreensões e de duelos de narrativas fomentadas por desafetos e concorrentes.


O POVO não localizou as defesas dos demais suspeitos na noite dessa sexta-feira, 14.

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