Sem sobrenome nem filiação registrados, jovem de 18 anos passa por processo de adoção
Raquel luta na Justiça para ter acesso a tudo o que lhe foi negado, por não ter sobrenome nem filiação em sua certidão de nascimento
20:11 | Out. 28, 2021
Coisas não têm sobrenome, mas a gente, sim. Esses são dois versos da música "Todas as coisas têm nome", do cantor Toquinho. Apesar de o compositor repetir por toda a música que coisas não têm sobrenome, mas gente, sim, essa não é a realidade de toda gente. Raquel, moradora da Sapiranga, luta na Justiça para ter acesso a tudo o que lhe foi negado, por não ter sobrenome nem filiação em sua certidão de nascimento.
“Os lugares não costumam aceitar o documento que eu tenho. Eu parei de estudar porque não aceitavam a documentação apenas com meu nome. Eu estudei até o 6º ano. Além disso, é complicado pegar medicamentos no posto de saúde. Eles não aceitaram no dia que eu fui pegar”, conta a jovem.
Por não ter sobrenome, nem filiação, ela precisou lidar com diversas dificuldades. A primeira seria o impedimento de possuir outros documentos, além da certidão de nascimento, como o Registro Geral (RG), o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e a Carteira de Trabalho. A segunda seria ter acesso ao ensino público. Raquel conta que sempre teve dificuldade de conseguir ser aceita nas escolas por causa de sua situação. Também não conseguiu ter acesso a nenhuma das doses da vacina contra Covid-19, porque não tem CPF, nem o Cartão Nacional de Saúde.
A necessidade de possuir, no papel, tais dados se estende a diversas outras questões. Para ter acesso a medicamentos e serviços do Sistema Único de Saúde, Raquel precisaria ter filiação e sobrenome registrado em sua certidão de nascimento.
Família e adoção
Para entender mais sobre a Raquel, também é preciso saber quem é Rosilene Lima, 38, faxineira e recicladora. Raquel chegou ainda recém-nascida à casa da família de Rosilene. A faxineira conta que sua mãe, dona Maria de Fátima Lima, havia resolvido adotar a bebê, mas com a morte da matriarca, não houve a oficialização da adoção, então Rosilene era quem cuidaria de Raquel a partir daquele momento.
“Deixaram a Raquel para a minha mãe criar. A minha mãe já estava com o processo de adoção, mas ela não conseguiu porque faleceu. Então, eu fiquei com ela.” Atualmente, Raquel e a família lutam para conquistar os direitos da jovem.
Neste mês de outubro, Raquel e Rosilene estiveram na Defensoria Pública do Estado do Ceará para dar início ao processo de adoção formal de Raquel, dando à jovem um sobrenome e uma filiação. Pelo menos no papel e perante à Justiça, porque no dia a dia, a jovem sempre pode contar com o apoio da “mãe de criação”.
A vida de Raquel foi cercada por dificuldades, mas também por rotineiros atos de amor: “Eu espero que a gente consiga solucionar isso. Eu tenho fé em Deus que vai dar certo. Eu sinto um amor de mãe por ela, apesar de eu nunca ter tido filho. Eu faço tudo por ela. Por causa dela eu fui mãe, e agora sou avó também”, finaliza Rosilene.
Com 18 anos, Raquel é mãe de uma menina de 3 anos. O pai biológico da criança não reconheceu a paternidade, e a jovem, que ainda está sem documentação completa, ficou impossibilitada de recorrer na Justiça para que o pai biológico registre a filha. Dessa forma, a bebê foi registrada da mesma forma que Raquel, sem sobrenome.
Questionada sobre as expectativas em conseguir modificar os dados de seu documento, ela conta que o maior objetivo é conseguir colocar a filha em uma escola. “Também queria matriculá-la no ballet. Ela quer ir para a creche, mas infelizmente eu preciso dizer que não posso matriculá-la, por causa da falta de documentação”, lamenta.
O principal objetivo de Raquel é quebrar o ciclo da ausência de cidadania. Para Raquel, concluir os estudos, matricular a filha na escola e no ballet significa exercer com plenitude a cidadania. Sobre a adoção pela mãe de criação, a jovem diz: “É uma alegria ter isso no papel. Eu gosto dela, ela gosta de mim. Ela nunca deixou faltar nada para mim”.
Apoio da comunidade
Uma das pessoas que acompanhou de perto a situação da Raquel foi o Wander Alencar. Wander é mobilizador socialTambém chamado de líder comunitário no bairro Sapiranga e amigo da família. Ele diz que toda a demanda de problemas vinculados à comunidade chega até ele. “O intuito da minha função é tentar orientar os moradores e solucionar alguns problemas.”
Wander diz que já presenciou muitos momentos de dificuldades que a jovem precisou lidar. "A Raquel ficou grávida com 13 anos de idade. Quando chegou o momento de ela ter a bebê, ela foi ao hospital e acabou sendo detida na unidade, porque ela não tinha Carteira de Identidade. A família me ligou e pediu ajuda, e eu precisei acionar o Conselho Tutelar.”
Com um conselheiro tutelar, Wander conseguiu tirar Raquel e Raquelly do hospital. Ele conta que só através do Conselho Tutelar é que eles conseguiram o registro das duas: “Mas sem sobrenome, porque não constam os genitores da Raquel na certidão de nascimento dela”. Os problemas não acabam por aí. Por causa da falta de filiação no registro, mãe e filha não eram atendidas em locais como postos de saúde: “As atendentes diziam que o registro era falso, então ela sofreu muito. Muita discriminação!”.
Sempre nessas situações, Raquel recorria a Wander: “Ela me pedia ajuda, e eu sempre a encontrava chorando nessas situações. Eu precisava ir para conversar com a coordenadora das unidades de saúde, para conseguir os medicamentos. O pré-natal da Raquel foi todo feito comigo indo ao posto com o Conselho Tutelar para conseguir o atendimento. Até um atendimento médico ela deixava de ter por falta de documentação”.
“Ela sofreu por ser pobre, negra e por ser mulher. Muitas vezes você chega nessas repartições e secretarias e já é mal atendido. O que eu podia fazer para amenizar essas ações, eu fiz”, explica.
Duas saídas
A defensora pública, Natali Massilon, que atua no caso da Raquel, explica que haviam dois caminhos para regularizar a situação da jovem. A primeira seria entrar com uma ação de retificação de nome, solicitando que o juiz incluísse um sobrenome comum aos brasileiros, como o sobrenome Silva. "Já que a Raquel foi abandonada pelos pais, então ela não conhece a origem dela.”
A segunda opção seria a adoção: “A Raquel foi criada por duas pessoas, que são companheiras, que a criaram como filha. Quando eu soube disso, eu perguntei se elas tinham a intenção de adotar a Raquel, regularizando a situação que existia de fato. Elas decidiram fazer esse ato de amor e adotar a Raquel”.
Com a adoção, Raquel poderá ter tanto a filiação, como os sobrenomes das mães. "Demos entrada no processo de adoção, se der tudo certo a certidão da Raquel virá com o sobrenome das mães e a filiação registrada”, aponta a defensora.
A adoção de maiores de 18 anos tem a jurisprudência do Código de Processo Civil (CPC), e os processos são encaminhados para as Varas de Família. A defensora pública explica que antes do atual CPC a adoção de maiores de 18 anos dava-se por mera escritura pública, registrada em cartório, mas a legislação passou a exigir uma sentença constitutiva. Portanto, é hoje imprescindível dar entrada na justiça para controle jurisdicional.
“Esse processo é sempre judicial e tem alguns requisitos. Como tem esse vínculo familiar já há bastante tempo, acredito que o Poder Judiciário vai avaliar e conceder a sentença. Com a finalização dessa ação, uma nova certidão de nascimento será emitida com os nomes dos pais adotivos que serão inseridos, e aí a Raquel poderá emitir os demais documentos”, indica Natali.
A defensora também acompanhará o caso da filha de 3 anos de Raquel. “Primeiro esperamos a organização da certidão da Raquel, para depois solicitar a alteração dos dados da filha dela.” A perspectiva é que o caso seja solucionado em um ano.
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