Denúncias de racismo no Ceará em oito meses já quase igualam todo o ano passado

A partir de maio de 2021, os registros desses tipos de ocorrência passaram a ser realizados de forma virtual, permitindo que a vítima possa relatar a ocorrência sem sair de casa.

23:42 | Ago. 31, 2021

Por: Alice Sousa
Erika Born, ambulante, vítima de racismo em barraca da Praia do Futuro (foto: JULIO CAESAR)

O ano de 2021 já soma 55 denúncias de racismo no Ceará. Em oito meses, os casos representam 94,8% das ocorrências registradas em todo o ano passado, quando a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) recebeu 58 notificações.

Os números mostram que 21 das 55 denúncias ocorreram no mês de julho. Entre elas, no dia 31, uma mulher foi presa em flagrante por injúria racial na Praia do Futuro. Os dados são da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp).

No ano são ainda, até agora, 51 denúncias de injúria racial, 8 delas em julho. De acordo com a Coordenação de Políticas Públicas para Igualdade Racial (Cepir) no Estado, o aumento também representa uma maior conscientização do cearense sobre a desigualdade racial. 

 

Por nota, a pasta salientou que o aumento de registro desses crimes ocorreu a partir do mês de maio deste ano, quando os registros desses tipos de ocorrência passaram a ser realizados de forma virtual pela Delegacia Eletrônica da Polícia Civil do Ceará, permitindo que a vítima possa relatar a ocorrência sem sair de casa.

Em relação às denúncias de injúria racial, os números mostram que os anos com maior quantidade de ocorrências foram 2017 e 2019, com 166 e 169 denúncias, respectivamente. Já 2020 foi o ano em que o cearense registrou menos ocorrências de injúria racial dos últimos cinco anos: 93 ao todo, mais da metade delas no segundo semestre.

É possível observar movimento tímido na diminuição das denúncias de injúria racial e aumento das denúncias de racismo ao longo dos últimos cinco anos, quando comparados os gráficos.

 

Para Martír Silva, coordenadora da Cepir, na Secretária de Protecao Social (SPS), o aumento das denúncias de racismo indica uma maior conscientização sobre as relações raciais desiguais e discriminatórias, a partir da atuação de movimentos negros, da ampliação da informação sobre essa questão. Ela cita o trabalho educativo realizado pela pasta através de atividades remotas da campanha Ceará sem Racismo. "Por outro lado, vivemos uma conjuntura em que se expande a narrativa de negação de direitos, que não respeita nem valoriza a diversidade racial, que nega o racismo como processo desumano e de exclusão", explica. 

De acordo com o último boletim Desigualdade nas Metrópoles, divulgado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Fortaleza é a quinta metrópole mais desigual do Brasil, segundo dados do primeiro trimestre de 2021. Por meio do coeficiente Gini, que mede o grau de distribuição de rendimentos entre os indivíduos de uma população variando de zero a um, onde zero representa a situação de completa igualdade, em que todos teriam a mesma renda, e um representa a situação de completa desigualdade, em que uma só pessoa detém toda a renda. Fortaleza fechou o primeiro trimestre com um índice por volta de 0,650.

A antropóloga Izabel Accioly, afirma que o entendimento sobre a própria negritude é muito importante no contexto social cearense. "Temos um histórico de tentativas sucessivas de apagamento do povo negro no Ceará", explica. Para além disso, a antropóloga reforça que a desigualdade na capital tem base racial evidente. "Quando você anda na periferia de Fortaleza, é perceptível uma cor predominante nesses locais. Essa perspectiva racial impacta diretamente na perspectiva social dessas pessoas."

De acordo com o filósofo Silvio de Almeida, o racismo brasileiro não é um ato, mas um processo, que sistematicamente coloca grupos raciais à margem da sociedade. Assim, Izabel explica que, quando ocorre um crime de racismo, o ato não fere a dignidade e a honra apenas daquele indivíduo. Afeta todo o grupo racial.

"Soube recentemente do caso de uma professora negra em São Paulo, que foi seguida no mercado, acusada de roubo, foi chamada pela Polícia, que não encontrou nada e ela passou por esse grande constrangimento. Poderia ter sido eu, poderia ter acontecido comigo", exemplifica.

As marcas do racismo

De acordo com a psicóloga Narla Ramos, membro do Coletivo de Psicologia Denegrida, episódios de racismo, em geral, são traumáticos, porque as consequências acompanham aspectos da vida do indivíduo. Por ser um trauma, possui diversas formas de ser vivido. O impacto na autoestima é traço em comum nas diversas facetas. "Quando se passa por uma situação traumática de racismo, é como ser desnudado. Porque o racismo à brasileira é bem velado. Quando se passa por essa violência psicológica, é muito revelador. Pensando nela, uma pessoa que está trabalhando, que precisa trabalhar... mas o trauma é tão grande que paralisa ela. E isso ser no Ceará, onde se acredita que não existe racismo, é revelador", pontua a psicóloga.

Narla conta que não é de hoje que existe um olhar na psique sobre os efeitos do racismo. Nesse contexto, um apoio para vítima precisa vir numa ótica multidisciplinar, para além da psicologia. "Seria um fortalecimento de vínculos, porque trabalharia a questão epistemológica de como realizar esse cuidado, que na maioria das vezes é voltado pro assistencialismo. Mas, precisa ser um apoio que possa fortalecer, potencializar e fazer entender que essas pessoas que sofrem racismo são sim pessoas. Porque o racismo bestializa, coloca o negro nesse lugar do outro", aponta.

A lei é algo pouco eficaz se não há uma transformação de cultura

Por Fernanda Estanislau, advogada e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial na OAB Ceará

Nós temos na nossa legislação a tipificação de dois crimes diferentes. O crime de racismo é previsto na Constituição e foi regulamentado em 1997, aproveitando os tipos penais de uma lei anterior chamada “Afonso Arinos”, essa lei tratava o racismo com uma descriminação segregadora, sendo que essa segregação nunca aconteceu aqui no Brasil. O racismo, aqui, opera de forma velada, tendo como uma de suas características o insulto racial. Uma tentativa no Movimento Negro de tentar abarcar essa faceta que ocorre no Brasil, traz por volta dos anos 2000 a qualificadora de injúria racial, adicionada ao crime de injúria no nosso Código Penal. A injúria é um crime quando a dignidade da vítima é ofendida, enquanto o crime de racismo é uma ofensa praticada contra uma coletividade, sendo inafiançável e imprescritível.

É muito raro haver uma condenação por racismo. A nossa legislação foi alterada muito recentemente e até então o direito construiu sistematicamente, e desde antes da abolição, a figura do negro enquanto uma figura criminalizada e isso é algo que nossa legislação construiu, sedimentou e amarrou o funcionamento das nossas instituições pra enxergar o negro enquanto um agente criminalizado e não uma vítima. As vítimas de racismo, quando chegam às delegacias para fazer o boletim, enfrentam diversas barreiras de pessoas que não possuem o menor letramento racial, não sabem como o racismo funciona no Brasil, não sabem identificar o que é uma discriminação racial e ainda pode haver uma revitimização. É muito difícil alguém conseguir chegar aos finalmentes de formalizar uma denúncia, e quando chega, os casos são arquivados por falta de provas. O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA), no caso Simone Diniz, porque aqui se exige que o ódio racial seja comprovado e isso não corresponde à discriminação racial. A discriminação racial é reproduzir a sistemática que ocasiona os efeitos que trazem a continuidade do racismo. Ou seja, se você está fortalecendo a narrativa racista que mata pessoas negras todos os dias, você deve ser responsabilizado.

No Brasil, ainda que você professe ofensas racistas pesadíssimas, no processo, os aplicadores do Direito vão pedir que se comprove um ódio racial e isso é quase impossível, porque discriminação é diferente de preconceito. A discriminação é a externalização do preconceito, que é um sentimento individual e isso é impossível de se comprovar num processo. Prova disso é que a maioria dos arquivamentos ocorre por falta de provas. Inclusive, o crime de injúria passou por uma alteração. Antes, o Ministério Público não poderia entrar. A pessoa teria que entrar com um advogado privado. E hoje, caso seja acionado pela vítima, o MP pode entrar, no que chamamos de Ação Pública Condicionada à Representação da Vítima. Essa alteração se deu porque, antes, as pessoas chegavam até o MP por sofrer um crime de racismo e quando chegava até o juiz, o processo era arquivado por se tratar de um crime de injúria. Quando paramos pra analisar as terminologias e categorias, discriminação racial é um das expressões do racismo, assim como a injúria. Essa determinação, feita pela lei e doutrina, foi uma tentativa de incluir esse tipo de insulto racial que não estava sendo considerado em um judiciário que não está acostumado a ver o branco no lugar de réu. Colocar o crime de racismo como inafiançável e imprescritível é algo que dificulta ainda mais a responsabilização desse réu. A injúria racial vem tentar dar essa responsabilização, ainda que menor.

O racismo institucional é tão forte nessas instituições de entrada das denúncias que o senhor que sofreu racismo no Assaí chegou à delegacia chorando, e o delegado não aceitou registrar a ocorrência como racismo. Isso mostra a falta de letramento racial na força que organiza essas instituições. A Lei é algo pouco eficaz se não há uma transformação de cultura.

Serviço

No Ceará, a A Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), oferece o serviço de atendimento psicológico com escuta especializada para vítima de racismo, através do Centro de Referência e Apoio à Vítima de Violência (Cravv) e do Centro de Referência de Direitos Humanos (CRDH)

Denúncias de racismo ou injúria racial podem ser realizadas em qualquer delegacia e através da Delegacia Eletrônica, da Polícia Civil do Ceará.

Centro de Referência e Apoio à Vítima de Violência (Cravv)

Atendimento de 8 às 17 horas, de segunda a sexta-feira – remoto e presencial
contato: (85) 9 8895 5702 / cravv.ce@gmail.com ou pelo chat da SPS

Centro de Referência de Direitos Humanos (CRDH)

Atendimento de 8 às 17 horas, de segunda a sexta-feira – remoto e presencial

Contato: (85) 3101 2998 Whatsapp: (85) 98956 5349 Disque 155

Online: https://cearatransparente.ce.gov.br / crdh@sps.ce.gov.br