Apagão de dados prejudica combate à desertificação no Ceará
Última pesquisa sobre condições do solo feita no Estado foi publicada em 2016; pesquisadores criticam inércia das autoridades
21:36 | Abr. 14, 2021
No Dia Nacional da Conservação do Solo, comemorado nesta quinta-feira, 15, o Ceará não tem o que comemorar. O Estado passa por um verdadeiro apagão de dados sobre o uso e ocupação do território há pelo menos cinco anos. O último estudo a apresentar um diagnóstico das condições do solo em todas as Regiões do Estado foi publicado ainda em 2016 pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme). A pesquisa apontou um cenário alarmante: o Ceará era o único estado brasileiro com todo o seu território suscetível à desertificação. À época, 11% das terras cearenses, o equivalente a 16 mil km², já haviam perdido a capacidade produtiva por causa de processos contínuos de degradação do solo.
O Município de Irauçuba, na Região Norte, liderou o ranking de área desertificada entre as cidades cearenses. Conforme o levantamento, ao menos 23,29% do território municipal (1.400 km²) estava fortemente degradado ou em processo de desertificação. Em 2017, O POVO mostrou que a infertilidade do solo estava afetando a vida de agricultores e agropecuaristas irauçubenses que dependiam da terra para sobreviver.
Embora os indicadores do último estudo tenham servido de alerta para as autoridades, até agora não houve a implantação de políticas públicas contínuas e efetivas voltadas à preservação do solo cearense. É o que avalia o vice-presidente da Associação de Engenheiros Agrônomos do Ceará (AEAC) e especialista em solos, recursos naturais e meio ambiente, Francisco de Assis Bezerra.
“Os órgãos públicos não educam para o cuidado com o solo. Não veem esse problema, ou se veem, não querem investir em pesquisa. Isso vai se tornar muito grave”, pontua.
Pesquisador da área há 40 anos, Francisco conta que já realizou levantamentos de solos em quase todo o território estadual e aponta que as Regiões Jaguaribana, Sertão dos Inhamuns e Norte são as áreas com maior degradação de terra ou mais vulneráveis ao fenômeno da desertificação no Estado. Segundo ele, o mau uso do solo por agricultores e a irregularidade de chuvas são os principais agravantes para o problema. “As terras são super exploradas, desmatadas e pouco cuidadas. Os agricultores precisam ser melhor orientados no processo de plantio e colheita, porque caso isso não ocorra eles mesmos são os mais prejudicados”, comenta.
O especialista também aponta a necessidade de o poder público investir em ações educativas e de assistência técnica para evitar o crescimento de áreas desertificadas no Ceará a médio e longo prazo. “Eu espero que as autoridades comecem a se interessar por esse problema. É algo que, se não tiver a devida atenção o quanto antes, poderá resultar em problemas muito maiores, como a queda na produção agrícola e o aumento da miséria nas zonas rurais do Estado, por exemplo”, completa Francisco, que também é representante do Ceará no Grupo de Trabalho (GT) da Confederação dos Engenheiros Agrônomos do Brasil (Confaeab) que está elaborando a minuta de um projeto de lei para instituir a Política Nacional de Conservação do Solo e Água.
Esforços isolados
O engenheiro agrônomo Francisco Roberto Leite, técnico da Funceme e um dos pesquisadores responsáveis pelo último estudo de solos publicado pela instituição há cinco anos, diz que de 2016 até agora pouca coisa foi feita para evitar a desertificação do território cearense. “São esforços isolados. Medidas e iniciativas não muito abrangentes”, afirma o especialista sobre as ações recentes de combate à degradação do solo executadas no Ceará.
Entre os poucos exemplos, ele cita um estudo de recuperação de área degradada desenvolvido pela Funceme na Região do Médio Jaguaribe desde 2016 em um território de aproximadamente 5 hectares. “O nosso foco nesse trabalho é a recuperação da matéria orgânica, porque o que faz ela se tornar infértil é a perda dessa organicidade. Quando há essa perda, ocorre uma diminuição da espessura do solo e da capacidade da terra de reter água, o que a torna infértil”, explica o agrônomo.
O pesquisador afirma que o projeto pode ser levado a outras Regiões do Ceará, mas o avanço depende de mais investimentos pelo Governo do Estado. Ele ressalta, inclusive, que a pesquisa sobre os solos foi interrompida por problemas de logística e falta de recursos financeiros.
Mesmo sem a atualização dos dados há cinco anos, Francisco acredita que a área desertificada no Ceará seja maior nos dias de hoje. “Duvido muito que tenha havido diminuição, pelo contrário, acho que houve um aumento, porque se você for avaliar, não há hoje uma política pública consistente de combate à desertificação”, pondera, alertando ainda que “o solo é um organismo vivo e, portanto, precisa ser cuidado, senão morre”.
Proteger o Bioma para preservar o solo
Em nota enviada ao O POVO, a Secretaria de Meio Ambiente do Ceará (Sema) nega que a preservação do solo e combate à desertificação não estejam entre as prioridades de investimento do Estado. Segundo a pasta, há várias iniciativas sendo executadas no Ceará com o objetivo de proteger e promover o desenvolvimento sustentável do Bioma Caatinga, evitando o mau uso e degradação da terra.
“A Sema coordena, desde 2004, no âmbito do Ceará, o Programa de Prevenção, Monitoramento, Controle de Queimadas e Combate aos Incêndios Florestais (Previna), cujo objetivo é subsidiar o Governo Federal na formulação de políticas públicas de promoção e desenvolvimento de ações, contribuindo efetivamente para o planejamento e a utilização de estratégias de prevenção, monitoramento, controle de queimadas e combate aos incêndios florestais. Também estimula a criação de políticas voltadas para utilização de alternativas sustentáveis ao uso do fogo na agricultura”, diz trecho da nota.
A Secretaria também afirma estimular a criação de áreas protegidas, de proteção integral e uso sustentável, citando como exemplos o Os Monólitos de Quixadá, Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) das Águas Emendadas dos Inhamuns, Parque Estadual Sítio Fundão, no Crato, Parque Estadual Botânico do Ceará, em Caucaia, além da Área de Proteção Ambiental (APA) do Estuário do Rio Ceará.
A Sema lembra, ainda, que o Ceará conta com o Programa de Valorização de Espécies Vegetais Nativas, instituído por lei estadual, voltado para práticas de arborização, reflorestamento e requalificação de viveiros e hortos, ações que, de acordo com a pasta, são fundamentais para a preservação do solo e diminuição de áreas desertificadas.
Soluções a longo prazo
Em 2018, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) criou o Pronasolos - Programa Nacional dos Solos, que irá mapear mais de 6,9 milhões de km² de solo em todo o Brasil até 2048. A ação é realizada em parceria com dezenas de instituições - entre elas a Funceme - mobilizadas para investigação, inventariação e interpretação dos dados de solos brasileiros.
Entre os impactos apontados pela Embrapa, a partir dos dados que serão gerados pelo programa, os principais são o planejamento do uso da terra para expansão urbana, precaução de ocorrências de catástrofes nas cidades, planejamento do uso da terra no meio rural, correta avaliação do preço das terras para fins de compra e venda e apoio à concessão de crédito agrícola, reduzindo riscos de perdas tanto para os agricultores quanto para os credores.
A empresa estima que ao longo das três décadas de pesquisa, serão necessários investimentos na ordem de R$ 4 bilhões para que o Pronasolos alcance seus objetivos. O retorno para a sociedade, segundo a Embrapa, pode chegar a R$ 185 para cada real aplicado no programa. A grosso modo, o dado traduz uma equação óbvia: se governos e sociedade não lutarem pela preservação do chão em que pisamos, as próximas gerações podem pagar um preço muito alto.