"Tem gente, em pleno século XXI, pilhando o nosso patrimônio", diz paleontólogo cearense sobre tráfico de fósseis

A polêmica envolvendo o fóssil recém-descrito Ubirajara jubatus expõe os preconceitos de alguns pesquisadores estrangeiros com os paleontólogos brasileiros

14:07 | Dez. 18, 2020

Por: Catalina Leite
ACERVO de fósseis do Museu de Paleontologia Plácido Cidades Nuvens, de Santana do Cariri (foto: TATIANA FORTES 22/10/2018)

Atualizada em 19/12/2020, às 10h30min

Fósseis brasileiros são propriedade da União. Essa é a lei desde 1942, reforçada pela Constituição de 1988. Justamente por isso, tudo que envolva transporte dos fósseis brasileiros sem autorização dos órgãos nacionais competentes é considerado “usurpação”, ou, em outras palavras, tráfico. Infelizmente, o Cariri cearense é vítima constante do tráfico de fósseis, uma das possibilidades envolvendo o fóssil recém-descrito Ubirajara jubatus.

A nova espécie, encontrada na Bacia do Araripe, foi levada para a Alemanha em 1995 em condições consideradas suspeitas pelos paleontólogos brasileiros. Mas, além da possibilidade de tráfico, a polêmica envolvendo o Ubirajara expõe uma série de preconceitos de paleontólogos estrangeiros em relação aos brasileiros. “Eles tendem a achar que os nossos pesquisadores não têm competência suficiente para estudar os materiais”, comenta Felipe Lima Pinheiro, paleontólogo cearense e atualmente professor na Universidade Federal do Pampa (Unipampa).

Felipe já atuou como pesquisador visitante na Coleção do Estado da Baviera para Paleontologia e Geologia, em Munique, Alemanha, e na Universidade de Birmingham, no Reino Unido. Com a experiência, o cearense conta ter encontrado dois tipos de pesquisadores e curadores de museus: os que são "complacentes e defensores do comércio de fósseis” e os de uma geração mais nova, que já identificam a venda de fósseis como um problema.

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Fato é que todos os paleontólogos estrangeiros sabem que os fósseis brasileiros de suas coleções são oriundos de tráfico, diz Felipe. E não é só a Alemanha: Estados Unidos, Portugal, Japão, França, Suíça, Reino Unido… A lista continua, mas há pesquisador que vê a venda de fósseis brasileiros como algo bom. É o caso do coautor da pesquisa do Ubirajara, o inglês David Martill.

David Martill, uma polêmica à parte

“Pessoalmente, acho que o Brasil deveria emitir licenças para escavar e exportar fósseis brasileiros” afirmou David Martill ao O POVO, em entrevista por e-mail. O paleontólogo inglês fez carreira estudando fósseis do Araripe e virou persona non grata pelos pesquisadores brasileiros por suas constantes vindas ao Brasil para comprar fósseis. Quem afirma é o diretor científico do Geopark Araripe, Allysson Pinheiro.

“[A exportação dos fósseis] garantirá o suprimento de fósseis para cientistas e proporcionará emprego à população local. Muitas pessoas não concordam com isso... Mas certamente funcionou durante os anos 1980”, conclui David. Na opinião dele, o Ceará só conhece a própria história fóssil por causa do comércio ilegal do material, em uma época na qual o País “vazou como uma peneira”. “Os sítios de fósseis em Araripe são remotos e difíceis de policiar, mas seus portos, não. De alguma forma enormes quantidades de fósseis estavam passando por seus despachantes aduaneiros”, ironiza.

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O pesquisador reforça que não esteve envolvido no transporte do Ubirajara, mas também diz que não se importa com a origem dos fósseis que estuda. “Estou interessado apenas no valor científico dos fósseis, não em seu valor monetário ou se é um artefato cultural (o que não acho que fósseis sejam)”, escreve.

Na verdade, Martill acredita que os brasileiros deveriam ficar agradecidos pela presença - ainda que ilegal - de fósseis em coleções internacionais. Ele defende a tese ao citar o incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro: “Por quê? Vocês não tinham um sistema de extinção de incêndio?”. “Se vocês conseguirem repatriar esses fósseis [traficados dos anos 70 a 90], terão uma coleção ainda melhor do que a destruída no Rio. Estranhamente, vocês ficarão satisfeitos com o fato de tantos fósseis terem saído do Brasil.”

“Desejo-lhe boa sorte em seus esforços para repatriar seus fósseis. Com os melhores votos e Feliz Natal também, David Martill”, finaliza o e-mail de resposta.

Em nota enviada ao O POVO, o diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Alexander Kellner, define as afirmações de Martill como "estarrecedoras". "Mais perversa foi a referência à tragédia do incêndio do Museu Nacional para justificar essa pilhagem. Seria o mesmo que responsabilizar todos os ingleses pelo Massacre de Amritsar (1919), quando centenas de pessoas desarmadas, incluindo mulheres e crianças, foram assassinadas por ordem da Inglaterra que mantinha a Índia como colônia", escreve. "Sr. Martill, respeite a comunidade científica do Brasil e devolva os fósseis!", completa o diretor.

#UbirajaraPertenceAoBR

O problema, reforça o cearense Felipe Lima, não é os estrangeiros estudarem os fósseis brasileiros, mas a presença deles nos museus do País garante movimentação econômica a partir de visitações em museus, além de comporem a identidade cultural das regiões.

“Tem gente, em pleno século XXI, pilhando o nosso patrimônio. Os fósseis ali no Araripe estão muito ligados à própria cultura do local. Você vê os fósseis em tudo, sendo usado até em medicina tradicional, pra ter ideia”, desabafa o paleontólogo. “Tem várias regiões no planeta cuja renda de comunidades é a Paleontologia. Como na Argentina, na Alemanha, em Portugal… É uma coisa sub explorada no Brasil, mas que a gente não vai conseguir explorar se a gente for constantemente roubado do nosso patrimônio.”

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Para discutir sobre essas questões, os brasileiros levantaram no Twitter a hashtag #UbirajaraBelongsToBR (Ubirajara pertence ao Brasil, em tradução livre). De acordo com Felipe, a hashtag surtiu um bom efeito em alguns pesquisadores estrangeiros. “Muitos pesquisadores de fora, europeus inclusive, aderiram. [O Ubirajara] acabou tendo uma relevância de questionar essas práticas”, comemora. Veja algumas contribuições:

A prática de roubo de fósseis é antiga e ocorre MUITO no Brasil. Acusam nossos cientistas de não fazerem ciência - e como a farão, se o material da nossa terra é simplesmente retirado e mandado pra fora?

Muitos questionamentos após esse artigo.#UbirajarabelongstoBR https://t.co/XtJRQg9w39

— Otávio Vulcão - Divulgação Científica (@OtavioVulcao) December 14, 2020

Inaceitável que em pleno sec. XXI, estejam retirando os fósseis do país. Tal prática, deixa um vazio na nossa história. Queremos visitar fósseis brasileiros em museus brasileiros!
Nossa integrante @Bia_Grigio, elaborou a arte para cobrar o que é nosso.#UbirajarabelongstoBR pic.twitter.com/ExPeS3rRqC

— Arqueologia e Pré-História (@ArqueoPreHist) December 14, 2020

A comunidade internacional ignorando qlq comentário sobre a origem mal explicada do fóssil. No dos outros é refresco, né coleguinhas? Falar de Myanmar era modinha? Se é no BR pode, né? #UbirajarabelongstoBR

— Aline Ghilardi (@alinemghilardi) December 14, 2020

Até quando teremos fósseis brasileiros que são PATRIMÔNIO NACIONAL, sendo roubados e depositados em coleções estrangeiras?

É inadmissível que revistas científicas fechem os olhos pra isso.
#UbirajaraBelongsToBR

— Joseane (@Joseane_sf) December 13, 2020