Paleontólogos questionam procedência de fóssil cearense recém-descrito por estrangeiros
O fóssil do Ubirajara jubatus foi encontrado na bacia do Araripe e exportado para a Alemanha em 1995, com uma autorização assinada por funcionário do DNPM, posteriormente condenado por improbidade administrativa
13:52 | Dez. 18, 2020
A publicação de uma nova espécie de dinossauro encontrada na Bacia Sedimentar do Araripe, no Cariri cearense, tem chacoalhado as revistas internacionais. O Ubirajara jubatus tinha um tamanho aproximado de uma galinha, com uma crina ao longo do dorso e duas “fitas”, estruturas rígidas que seriam únicas da espécie. Tudo muito interessante, se não fosse pela série de incongruências da procedência do fóssil do período Cretáceo, cerca de 110 milhões de anos atrás.
O estudo publicado na revista científica Cretaceous Research, no dia 13 de dezembro, explica que o fóssil saiu do Brasil para a Alemanha em 1995, integrando agora o acervo alemão do Museu Estadual de História Natural Karlsruhe. No entanto, paleontólogos brasileiros questionaram a existência da autorização e a validade dela. Afinal, como os fósseis nacionais são propriedade da União, a retirada inadequada deles do Brasil é considerada tráfico.
No estudo, os autores afirmam que a autorização foi expedida no dia 1º de fevereiro de 1995, por um agente do escritório regional do Crato do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). De fato, a revista Galileu teve acesso ao documento, enviado pelo coautor do estudo Erbehard Frey, pesquisador do Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe. A autorização é assinada por José Betimar Melo Filgueira.
Como o DNPM foi substituído pela Agência Nacional de Mineração (ANM) em 2017, O POVO entrou em contato com o órgão atual questionando a existência oficial do documento. No entanto, até a publicação desta reportagem, não houve respostas.
Ao O POVO, o paleontólogo Felipe Lima Pinheiro opina que a autorização apresentada é inválida. “A carta fala apenas do transporte, mas não cita quantos fósseis, não os descreve, não diz qual o tamanho das caixas”, pontua. O documento também não traz mais dados sobre o autorizado, como número de identidade ou passaporte.
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“É [preciso] uma descrição detalhada do que consta. Não é só uma caixa contendo fósseis. Você tem que descrever qual é o fóssil e dizer onde ele estava depositado. Ou seja, necessariamente o fóssil tem que fazer parte de uma coleção científica brasileira antes de ir para fora… E ele vai por um tempo. Ele pode ir, mas tem que ter data pra voltar”, reforça o paleontólogo Allysson Pinheiro, diretor científico do Geopark Araripe, professor e pesquisador da Universidade Regional do Cariri (Urca) e membro do Conselho de Geoparks Mundiais, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Além disso, de acordo com o Decreto nº 98.830, de 15 de janeiro de 1990, e a Portaria MCT nº 55, de 14 de março de 1990, a burocracia para estrangeiros estudarem e transportarem fósseis brasileiros vai muito além de uma carta do DNPM. Tudo precisa passar pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), na época chamado apenas de Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).
José Betimar, do DNPM, já foi condenado por improbidade administrativa
José Betimar Melo Filgueira, representante da DNPM no Crato que assinou a autorização apresentada por Frey, já foi condenado por emissão irregular de certificados e laudos do DNPM que colaboraram com um esquema de fraudes.
“José Betimar, na condição de Chefe do 10º Distrito do DNPM, assinou alguns certificados de autenticidade de pedras ditas preciosas, não destinadas à exportação [...], expedindo, ainda, sem ter competência para tanto”, descreve a Apelação Cível nº 530.207-CE, anexada em revista do Tribunal Regional Federal em 2013. Betimar foi condenado por improbidade administrativa, com multa de R$ 25 mil, suspensão dos direitos políticos por três anos e a perda a função pública.
Quando à autorização expedida por Betimar para o pesquisador alemão, o professor Allysson reforça que cabia ao DNPM apenas fiscalizar a mineração (e portanto os fósseis), sendo fora do alcance pleno da instituição autorizar a exportação do material. “O problema é como o fóssil saiu daqui, sem necessidade que as instituições brasileiras soubessem”, critica o paleontólogo.
A reportagem tentou entrar em contato com José Betimar para questionar as condições da assinatura, mas até a publicação desta matéria não obteve retorno.
O que a lei diz
Além das autorizações adequadas do MCTI, os estrangeiros também devem trabalhar em cooperação com instituições brasileiras, responsáveis por fazer a coleta de dados e materiais no País e encaminhar ao MCTI os respectivos pedidos de autorização. É o que definem os artigos 14 a 16 da Portaria nº 55 do ministério.
Caso os pesquisadores estrangeiros não tenham cooperação com nenhuma instituição brasileira, eles devem solicitar apoio ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O Conselho irá procurar instituições que possam assumir essa função, e, caso não encontrem, o próprio CNPq assume o papel.
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Entre os autores do estudo publicado na Cretaceous Research estão: os ingleses Robert Smyth e David Martill, os alemães Eberhard Frey e Norbert Lenz e o mexicano Héctor Rivera-Sylva. À revista Galileu, Frey disse que chegou a recrutar um brasileiro (não identificado) para participar, mas, após o início da pesquisa, descobriu-se que ele teria falsificado uma carta às autoridades da Universidade Heidelberg, na Alemanha, que confirmaria sua qualificação como doutor.
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