Incêndio no Casarão dos Fabricantes: o fogo que consumiu sonhos e uma parte da história de Fortaleza
Além de trazer consequências financeiras e emocionais a comerciantes, o incidente danificou severamente uma das estruturas mais antigas da Cidade
08:24 | Set. 17, 2020
O incêndio que atingiu o Casarão dos Fabricantes, no primeiro sábado deste mês, consumiu mais do que é possível perceber com os olhos. Quando a chama tomou conta da unidade comercial de confecções, localizada no Centro de Fortaleza, destruiu sonhos de trabalhadores e danificou severamente uma parte importante da história da Cidade - a última edificação ainda em pé, de um conjunto que deu vida ao Município.
Construída há 190 anos, a estrutura que abrigava o centro comercial foi projetada para servir como residência de uma família influente à época. Obedecendo ao estilo neoclássico, o prédio foi erguido ao lado de outras edificações, pensadas para atender o mesmo propósito e com localização no entorno do riacho Pajeú.
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Esse processo de ocupação, segundo Romeu Duarte, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), marca um período de expansão da Cidade, sob o comando da Coroa Portuguesa e após invasão dos holandeses. Ele explica ainda que as residências erguidas próximas ao riacho foram uma das primeiras a surgirem naquele pedaço de chão - que viria a crescer e ser conhecido como "terra da luz".
Duarte afirma que as estruturas resistiram por muito tempo, mas acabaram sendo demolidas para darem espaço ao novo Mercado Central, unidade comercial especializada em produtos artesanais - há poucos mais de 20 anos. O docente destaca que o prédio onde funcionava o Casarão foi o único a permanecer em pé nesse processo.
Para se manter ao longo de décadas, o equipamento sediou organizações importantes, como o Hotel Central, o Paço Municipal de Fortaleza e a Fundação do Bem-Estar do Menor no Ceará (Febem-CE). Há 14 anos, deu vida ao projeto da cearense Camila Botelho - dona da marca Casarão dos Fabricantes.
A empresária terceirizou o espaço, alugando para que os comerciantes - que vendiam produtos em locais próximos-, ocupassem os boxes. O negócio funcionava bem e se tornou um dos pontos comerciais mais conhecidos da Cidade, até o incêndio interromper essa história.
Quando o fogo surgiu
Era noite quando o fogo começou a se espalhar pelos corredores da unidade, em um momento onde já não haviam mais comerciantes no local- apenas mercadorias guardadas. De acordo com relatos de populares, foram os vigilantes do Mercado Central que perceberam o início do incêndio e ligaram para o Corpo de Bombeiros Militar do Estado (CBMCE).
A equipe que atendeu o chamado foi liderada pelo Capitão Aluízio. Para O POVO, o bombeiro conta que agentes chegaram no local às 20h15min. Ele conta que as chamas avançavam rápido e que atingiam quase toda área interna da edificação- devido a fatores como a "grande carga de material combustível, principalmente artigos têxteis, armazenada na unidade".
Aluízio coordenou a realização do chamado "ataque defensivo", criando estratégias que conseguiram controlar o incêndio pouco antes da meia-noite - mas a operação teve continuidade até o dia seguinte. Ao todo, 44 bombeiros militares trabalharam no local e 180 metros cúbicos de água foram utilizados na ação.
Com o fogo controlado, uma lojista ainda conseguiu retirar o material de seu boxe - um dos poucos que não foram atingidos agressivamente pelas chamas-, antes de a unidade ser isolada. O capitão lembra que outra comerciante apareceu no momento do incêndio e chegou a desmaiar quando viu o local que trabalhava, com todos os seus produtos, pegando fogo.
"Ela foi atendida na ambulância e precisou apenas de oxigenação para se restabelecer, não sendo necessária sua remoção para um hospital", lembra o profissional.
Sonhos consumidos pelas chamas
Há alguns quilômetros de distância dali, Laice Bezerra, permissionária da unidade comercial desde quando o empreendimento surgiu, aproveitava uma viagem com a família-, em um sitio na praia da Caponga, em Cascavel, Região Metropolitana de Fortaleza. A comerciante de 42 anos havia fechado mais cedo a loja de artigo feminino e pretendia voltar no dia seguinte. Até receber a notícia.
Desesperada, ela lembra que não conseguiu dormir naquela noite - pois não sabia o estado dos seus produtos e muito menos o que o futuro a reservaria. Na madrugada, Laice pegou o carro e foi para o local. Ela tentou entrar no prédio, mas foi impedida por um bombeiro. Depois de insistir muito, ele a levou até onde não haveria risco. De lá, ela viu seus boxes totalmente destruídos.
Assim como Laice, mais de 200 comerciantes trabalhavam no local. Com o fogo, os lojistas perderam produtos no qual investiram dinheiro e ficaram sem a estrutura onde - por muito tempo,- seguiram trabalhando.
Os sonhos da empresária Camila Botelho também estavam no local, dando vida e sustentação aos que foram reforçados com a sua iniciativa. Em suas redes sociais, a dona da marca desabafou: "Juntos fomos começo e juntos seremos recomeço. A dor é imensa, mas não é maior do que a força de reconstruir até o que o fogo apagou".
A dimensão física do incêndio
O fogo não atingiu prédios próximos, como o Mercado Central, e ainda não teve a causa definida. De acordo com relatos de quem estava no local, minutos antes do início do incêndio - homens estavam trabalhando no Casarão com soldagem, que consiste em usar calor para unir pedaços de materiais.
Apesar do relato, o Núcleo de Perícia em Engenharia Legal e Meio Ambiente (Nupelm) da Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) ainda não confirmou se esse foi o motivo do incêndio. Ao O POVO, o órgão informou que "segue dependendo da segurança da estrutura do que restou do prédio para dar continuidade aos levantamentos da perícia".
Isso porque a unidade foi tão danificada pelo fogo que o seu teto chegou a desabar, apresentando severas rachaduras e riscos de segurança. Por esse motivo também, os comerciantes seguem impedidos de entrar para verificarem a possibilidade de resgate das mercadorias.
De acordo com o Anuário do Ceará, o equipamento particular estava em processo de tombamento- ação que ocorre com o objetivo de preservar "bens de valor histórico". Em nota, a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor) afirmou que "realizará vistoria técnica para a avaliação do estado do bem e para elaboração de diretrizes específicas adequadas, visando manter as características originais históricas".
A esperança de um segundo recomeço
O incêndio aconteceu quando os comerciantes se recuperavam de um primeiro desafio- a pandemia do novo coronavírus,- que atingiu o Ceará em março deste ano. Com as atividades paralisadas, os lojistas haviam voltado para o local há pouco menos de dois meses, e se recuperavam do abalo financeiro que o tempo sem trabalhar os proporcionou.
A comerciante Laice recorda que o recomeço depois da pandemia foi difícil. "Os clientes tinham medo e o movimento diminui. Praticamente não tinha ninguém, mas só em voltar era uma alegria, nós sabíamos que nossas coisas estavam nos esperando", emociona-se.
Na última semana, a administração do espaço anunciou que outra unidade seria erguida, em uma rua próxima ao equipamento, para funcionar como o novo Casarão dos Fabricantes. De acordo com órgão, as vendas dos comerciantes devem ser retomadas ainda neste mês no espaço e em mais dois centros comerciais, sendo eles a Catedral Empreendimentos e o Feirão São José.
A notícia deu esperanças ao comerciante Carlos André, que há 13 anos trabalhava na unidade e não conseguiu recuperar ainda seus produtos. "A gente tem que agradecer. Várias pessoas nos acolheram", pontua o lojista ao fazer um balanço dos primeiros dias após o incêndio, lembrando que centros comerciais chegaram a ceder espaços para que os lojistas prejudicados pelo incêndio seguissem trabalhando.
Uma linha de crédito ainda deve ser disponibilizada aos comerciantes- medida que será definida em reunião entre a administração da unidade com o Banco do Nordeste (BNB). “Vamos olhar para frente”, comenta Carlos.