As origens do cearencês: A palavra "baitola" veio de um engenheiro inglês que não sabia falar bitola?
Em texto que circula nas redes, a origem da palavra é atribuída a uma troça com um suposto engenheiro britânico homossexual. Mas a origem do termo vem de antes
Reza a lenda, certo engenheiro britânico carregava o sotaque ao orientar os trabalhadores locais na construção das primeiras ferrovias do Brasil. Dois trilhos são separados por uma largura determinada, padronizada em cada país. Essa distância é chamada de bitola. No inglês, a letra i pode soar como “ai” (como nas palavras die, pie) ou como um i, mais próximo ao português (como nas palavras fit, kit, conhecidas do brasileiro). Conta a mesma lenda que o dito engenheiro, quando não estava em obras, estava envolvido com rapazes. Ao chegar no canteiro, ia examinar o trabalho realizado e verificar se estava exata a bitola dos trilhos. O homem, então, teria costume de falar bitola com a pronúncia anglófona, de i como ai: baitola.
A mesma história dá conta que os brasileiros, incomodados com o tratamento dispensado pelo supervisor estrangeiro, ao vê-lo aproximar-se, alertavam “Lá vem o baitola”, em alusão à sua homossexualidade e troça com sua pronúncia. No Ceará, a narrativa ganhou ares locais e o tal engenheiro, um nome. Seria o inglês Francis Reginald Hull, que empresta o sobrenome para a principal via de ligação entre Fortaleza e Caucaia, a avenida Mister Hull. O homem nascido em Londres foi responsável por tocar obras ferroviárias em São Paulo, na Bahia e no Ceará, onde também atuou como superintendente da South American Railway Construction Company Limited, que administrava as estradas de ferro de Sobral e de Baturité.
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A história, naturalmente, é uma lenda. Mas o termo “baitola” acabou absorvido pela língua e ficou na boca dos cearenses. Entrou para o léxico popularmente chamado de cearencês. Hoje, inclusive, é dicionarizado. Segundo o dicionário Michaelis, baitola é um termo regional pejorativo que designa um “homossexual passivo”. No texto mais popular a circular nas redes sociais contando a suposta origem da palavra, Francis Reginald Hull, além de identificado como o engenheiro descrito, é caracterizado como homossexual assumido, uma ousadia para o início do século XX, em que ter relações sexuais com alguém do mesmo sexo era até passível de prisão no país onde nascera.
As origens do termo estão no tupi. A palavra baito aparece na obra Casagrande & Senzala, do autor pernambucano Gilberto Freyre, que encontrou alusões em anotações dos séculos anteriores. Numa delas, do frei Vicente do Salvador (1564-1636), é explicado que meninos indígenas, ao atingir a puberdade, eram colocados nestas ocas, chamadas baito, em que ficavam na companhia de outros homens para ensinar-lhes as atribuições masculinas. “Durante a segregação, o menino aprendia a tratar a mulher de resto; a sentir-se sempre superior a ela; a abrir-se em intimidades não com a mãe nem com mulher nenhuma, mas com o pai e com os amigos”, escreve Freyre. Mulheres eram admitidas apenas quando velhas ou “masculinizadas ou dessexualizadas pela idade”, e para ensinar aos jovens o sexo.
“O garoto que ia para o baito era o baitola”, explica o professor de língua portuguesa e filologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) Josenir Alcântara. A criação de histórias para justificar palavras é conhecida, na filologia, como fantasia etimológica. Isto é, aquilo que não tem lastro científico, não foi identificado nas raízes da língua e parte apenas da boataria, como no caso do senhor Francis Hull. Por outro lado, a acepção de baitola ligada à homossexualidade também já estava presente no livro de Freyre. Nos compilados, o historiador nordestino encontrou relatos do explorador português Gabriel Soares (1540-1592) descrevendo que nos baitos de algumas tribos eram encontrados jovens em livre intercurso sexual com outros jovens do mesmo sexo, tendo em vista a freguesia predominantemente masculina destas ocas.
Era neste período de frequência aos baitos que os meninos aprendiam também responsabilidades da vida adulta, como caça, pesca, luta. As tatuagens e perfurações do septo, dos lábios ou das orelhas características de cada tribo também eram feitas ali. Ainda assim, foi apenas o caráter sexual identificado em alguns grupos que passou para acepção do termo baitola, usado pejorativamente ainda hoje. “Qualquer língua expressa a fala do vencedor. É o vencedor que conta a história. O que nós fizemos com as palavras de origem tupi? Uma evolução negativa. Foi deturpado como nós geralmente deturpamos as línguas indígenas”, aponta Josenir Alcântara, especialista em filologia, área que estuda o desenvolvimento de uma língua.
Segundo o pesquisador, a história do cearencês tem, como qualquer língua, três elementos: o substrato, que são os nativos, no caso do Brasil, os indígenas; o superstrato, o colonizador que conseguiu impor sua língua, no caso o português; e os adstratos, que são as influências externas, como a dos africanos. “Mas há uma coisa muito importante a se observar: o cearencês, como qualquer variante regional, não é só riso, ela encobre e abafa muita tensão social”, desenvolve o estudioso. “Por exemplo você pega a palavra peba. ‘O almoço é peba', que é muito ruim, simples. Peba é de origem indígena, tupi, e é pejorativo para nós. Cunhã para o tupi são as mulheres mais amadas, minha mãe, minha mulher, minha filha, minhas amigas. Mirim quer dizer pequeno, mas quando usamos quer dizer que são pequenas e marginais”, conclui.
Não é cearencês, mas falamos também
- Mandioca
De origem indígena, a palavra mandioca é derivada de uma lenda. Conta a história que uma família tupi concebeu uma menina linda como um raio de luar. Ela foi chamada de Mani. A menina pouco comia e bebia, um dia não levantou da rede, mas nunca reclamou e até sorria. Por fim, faleceu. Os pais enterram Mani em sua própria oca. Eles regavam a cova da menina todos os dias, como era costume na tribo. Um dia, perceberam que um broto nascia na cova. Continuaram a regar e quando a planta cresceu, cavaram e notaram as raízes grossas e a polpa branquinha da mandioca, a planta nascida na oca da Mani.
