As origens do cearencês: deixe de ser aperreado que nós explicamos a origem de "aperreio"

Vez por outra, nosso estado de espírito pode ser definido em uma palavra: aperreado. O vocábulo é comum no Ceará, mas precisou atravessar o oceano Atlântico para chegar aqui

09:00 | Jul. 12, 2020

Por: Leonardo Igor
Quadro Procissão Marítima, pintado por Leandro Joaquim no século XVIII (foto: Museu Nacional das Belas Artes)

Há dias em que estamos aperreados, uma aperreação medonha mexe com o juízo do indivíduo e ainda vem gente aperrear ainda mais. Isto é, são dias em que estamos aborrecidos, angustiados e mesmo atormentados, como se tratados como um cão ou como se fossemos acossados por um destes animais que, no espanhol, são conhecidos como perros. Este aperreio todo é comum no cearencês e foi trazido para cá da Europa.

Segundo o filólogo catalão Joan Corominas, em seu livro Breve Diccionario Etimologico de la Lengua Castellana, a palavra perro surgiu na Idade Média como uma forma popular e algo pejorativa de se referir a um cachorro, que no castelhano - idioma popularmente conhecido, no mundo, como espanhol - também pode ser chamado can, palavra mais tradicional. Embora a origem de perro seja incerta, tem relação com a fonética, já que prrr ou brrr são onomatopeias usadas pelos pastores para atiçar estes animais.

Outra raiz está no perfil dos colonizadores do Nordeste brasileiro. Portugal e Espanha dividem a Península Ibérica e, durante a União Ibérica (1580-1640), em que o território português foi absorvido pelo vizinho, o Brasil esteve mesmo sob controle da Coroa espanhola. Segundo Corominas, entre os principais grupos de europeus vindos para cá estão os galegos, um grupo com idioma próprio que vive num região entre os dois países. No idioma galego, uma língua românica que foi base para o português e tem influências do espanhol, há o verbo apurrar, que significa atiçar um cão, cuja raiz lembra o perro espanhol.

No castelhano, com o acréscimo de radicais, perro também virou verbo. O aperreado escrito no português é igual ao espanhol e a pronúncia se assemelha. O verbo e substantivos derivados de perro atravessaram o Atlântico e se instalaram, assim como os galegos, no Nordeste. A palavra possui muitas variantes, entre elas, perrengue, bastante conhecida dos brasileiros.

Estes vocábulos - herança espanhola, galega e portuguesa - são dicionarizados, no Brasil. São verbo, substantivo e adjetivo. Têm variações regionais, mas são utilizados sobretudo no Nordeste e no Sul, embora neste último apresente ligeiras variações, podendo ser utilizados para definir uma pessoa raquítica, atrasada no crescimento, ou um estado de desânimo, melancolia. No Nordeste, prevalece a acepção de aflito, amargo e mesmo atarefado. 

“Havia a unidade linguística galaico-portuguesa”, explica o professor de língua portuguesa e filologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) Josenir Alcântara, “a partir dos traços fonéticos e lexicais, muito provavelmente, os primeiros colonizadores vieram do norte de Portugal, onde, até hoje, se constatam traços que remontam a essa antiga unidade linguística”. Quando o português usa GE, GI, JE ou JI, o galego usa XE ou XI. É assim que “ó gente” vira "oxente" e “virgem Maria” se converte em "vixe Maria".

Devido ao processo de colonização, o Brasil hoje é o único país das Américas a falar português. Ao sul, ao oeste, a noroeste e a sudoeste, os vizinhos falam o castelhano, Suriname e Guiana são os únicos países da América do Sul que não têm espanhol como idioma oficial, adotando, respectivamente, o neerlandês e o inglês como línguas correntes. A Guiana Francesa, que não é um país, mas sim um departamento da França, fala francês. Contudo, nem a aparente solidão linguística brasileira impediu que o castelhano deixasse marcas de pronúncia e até palavras no português falado no Nordeste.

O cearencês tem, como qualquer língua, três elementos: o substrato, que são os nativos, no caso do Brasil, os indígenas; o superstrato, o colonizador que conseguiu impor sua língua, no caso o português; e os adstratos, que são as influências externas. “Excetuando-se a Bahia, que recebeu um grande adstrato africano, e o Maranhão, que conserva um forte substrato indígena, o Ceará não se distingue dos demais Estados nordestinos”, esclarece Alcântara, ao indicar a influência do galego e do castelhano sobre o português no Nordeste, em especial no interior.

A influência é sentida especialmente na fonética. Ainda hoje é comum ouvir entonces e donde, equivalentes castelhanos de “então" e “onde”. Por vezes, quando pronunciamos semana, às vezes soa como no galego, somana ou sumana. Verbos como varrer, às vezes ditos como o espanhol barrer, inclusive já foram aceitos na gramática do português brasileiro escritos com a letra b. Outras palavras importadas direto do espanhol continuam presentes no cearencês, como a burundanga, que pode ser algo mal feito, confuso, sujo ou uma comida repugnante, de baixo valor nutricional.


Não é cearencês, mas falamos também


- Francofonia
Em se falando de línguas românicas que influenciaram o português no Brasil, o francês também teve seu papel. Uma das palavras mais comuns por aqui vindas do idioma de Balzac é restaurante. Vem do latim restaurare, que indica a capacidade de restaurar uma pessoa. Perto do famoso museu do Louvre, um cozinheiro vendia seus caldos com o nome “bouillons restaurants”, ou seja, caldos restauradores. Daí em diante, é história. Mas a influência francesa não para aí, afinal, palavras como marmota, clichê, comitê cachê, chofer, entre outras, fazem parte do nosso vocabulário.