Transposição do Rio São Francisco reflete disputas políticas históricas no Brasil
Obra teve mais interesses político-econômicos brasileiros que interesses com recursos hídricos nordestinos durante o século XIX
14:21 | Jun. 17, 2020
As águas do Rio São Francisco finalmente deverão chegar ao Ceará após 13 anos do início do projeto, ainda no governo do então presidente Lula (PT). Símbolo do combate à seca, a obra passou por constantes adiamentos de entrega e ainda não está finalizada no Estado. Segundo a Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), o Cinturão das Águas do Ceará (CAC), composto por cinco lotes, está 65% completo. Apesar disso, a pasta garante que os lotes 1, 2 e 5 já estão aptos para receberem as águas, com 98% das estruturas concluídas.
O presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) vem ao Cariri cearense no dia 26 de junho para inaugurar a chegada das águas do São Francisco ao Estado, por meio do reservatório de Jati, a 525 quilômetros de Fortaleza. Segundo ele, a obra tem muita importância para o Nordeste e é aguardada há anos.
Como destacou o repórter e colunista do O POVO Carlos Mazza, a inauguração “reedita um dos debates mais persistentes na política cearense recente: quem, afinal de contas, é o ‘pai’ da transposição?”. A novela política em torno do Rio São Francisco, no entanto, vem desde o século XIX e reforça que o interesse com a obra é mais voltado para a construção da imagem de um herói do que para resolver a seca no Nordeste brasileiro.
LEIA TAMBÉM | Especial O POVO: À espera de Francisco - A peleja da água
“É uma disputa pela história. Sem dúvida, a história serve como um meio de engrandecer o projeto. É o peso histórico também dá importância a ele”, comenta o historiador Gabriel Pereira, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) e estudioso do rio São Francisco no Império.
Interesses econômicos
Durante entrevista ao O POVO, o historiador relembra de o ex-presidente Lula afirmando, em 2007, que nem Dom Pedro II (1825 - 1891) tinha conseguido iniciar a transposição do Rio São Francisco. Dez anos depois, o ex-presidente Michel Temer (MDB) se apossava do mesmo discurso e é provável, na opinião de Gabriel, de que o presidente Bolsonaro faça o mesmo. D. Pedro II, no entanto, tinha intenções pouco nobres em relação à canalização do Rio.
“A história é cheia de meandros, igual o Rio São Francisco. Na verdade, o debate da canalização do Rio no século XIX começa bem antes da seca de 1877”, pontua o estudioso. Ele destaca que a primeira discussão sobre o assunto foi no período colonial (entre os séculos XVI e XIX), quando acreditava-se que existia ouro no Ceará, especialmente no Cariri, e que a transposição viabilizaria o garimpo.
Depois, em 1840, o debate é reacendido, mas para criar um canal de navegação que interligasse o interior com o litoral brasileiro, conta o historiador. O objetivo era escoar a produção sertaneja para o mercado mundial. Era época de expansão mercadológica, com a Revolução Industrial crescendo na Europa, principalmente na Inglaterra. “Crescem a navegação a vapor e as estradas de ferro como símbolos da modernidade, e no Brasil se tinha a ideia de que existiam vários caminhos naturais para escoar a produção dos sertões”, explica Gabriel.
Conforme ele, foi assim que as províncias do Norte (porção acima de Minas Gerais) e do Sul com destaque aos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco começaram a disputar o Rio São Francisco, a grande via de comunicação do Brasil. Era chamado de Mississipi brasileiro, e os deputados da época consideravam que bastava fazer um simples canal. “Não é difícil. Cavar e atirar a terra para os lados pouco custa”, disse o deputado França Leite (PB) no Plenário em 1846.
A província que concentrasse a canalização do São Francisco, portanto, teria grande vantagem econômica, pois movimentaria a própria praça comercial. Assim, cada região dava uma justificativa diferente para ser a privilegiada, inclusive afirmando que o Rio São Francisco não cursava seu caminho natural. “Todas as províncias iam provar cientificamente que o caminho natural do Rio era [no passado] por cada uma delas. Chega a ser engraçado, eles pensavam em ‘consertar’ o Rio”, comenta o especialista.
Nesse vai e vem de razões, a seca surgiu no Ceará como argumento. “Na falência de melhoramentos materiais, o Ceará será despovoado, reduzido a um deserto. Dispensará, portanto, as vantagens de uma boa magistratura, porque os desertos não precisam de Justiça. Despesas com a abertura do canal, portanto, serão infinitamente mais úteis do que com a elevação dos vencimentos da magistratura”, defendeu em 1850 o deputado cearense Araújo Lima.
A seca como oportunidade
O historiador Gabriel Pereira comenta que é preciso entender a ausência de força política das províncias do Norte. Em meados do século XIX, por exemplo, o Ceará tinha oito deputados concorrendo contra 20 de Minas Gerais. Por isso, restava apelar para o sofrimento da população e também para a dificuldade de conseguir atenção da Coroa.
Em 1871, o senador Pompeu já reclamava do desamparo com a Província: “O Ceará não é considerado para os benefícios. Só é considerado para dar soldados e dinheiro para o Império”. “Tudo se concede para Minas, ao passo que para o Ceará é preciso pedir licença, uma petição com muito cuidado, um ‘espero receber mercê’”, ironizou o senador cearense Viriato de Medeiros em 1884.
As queixas refletiam a falsa benevolência de Dom Pedro II. Ele até enviava engenheiros para estudar a canalização do Rio São Francisco a favor das províncias do Norte, mas sempre arquivava os projetos do tipo.
LEIA TAMBÉM | Especial O POVO: O dia dos mil mortos
+ Especial O POVO: Semiárido das nascentes
Na realidade, o desejo do imperador era suprimir revoltas dessas províncias e garantir a imagem de governante cuidadoso. “Especialmente na época de seca, começam a se impulsionar grandes projetos. É um pessoal que vai trabalhar a troca de comida - de ração, eles diziam. A seca era uma oportunidade de criar uma infraestrutura moderna com mão de obra baratíssima”, analisa o historiador. “Fortaleza mesmo cresce com base nisso, é baseada nessa exploração sertaneja”, conclui.
Em uma das discussões sobre o orçamento para canalizar o São Francisco, o deputado paraibano França Leite afirmou, em 1846: “Aquela gente do Norte acha-se sem trabalho e não duvidaria ganhar a subsistência por meio do seu trabalho. Um homem trabalha um dia inteiro de enxada por 100 réis e de machado por 160 réis. Com salários tão baixos, o trabalho se pode fazer sem grande despesa.”
Conflito de interesses políticos impediu a canalização no séc. XIX
Apesar de décadas de debates, a canalização do Rio São Francisco nunca saiu do papel durante o Império. E não era por falta de tecnologia ou conhecimento sobre transposições: o Egito já tinha empreendido o Canal de Suez em 1869, modelo grandioso para os deputados brasileiros.
“Mais do que ser mirabolante, o projeto ia contra o interesse de províncias poderosas, como de Minas Gerais, Rio de Janeiro [a Coroa], Pernambuco e Bahia; e contra os interesses de Fortaleza, o que pesou bastante para a não realização do canal”, explica Gabriel.
Até mesmo a bancada cearense estava dividida. Deputados que representavam os interesses de Fortaleza e Sobral desaprovavam a canalização do Rio São Francisco porque seria Aracati a cidade beneficiada, já que o deságue seria no rio Jaguaribe. Na época, Fortaleza buscava se afirmar como praça econômica. “Fortaleza podia até ser a capital, mas não era uma cidade com muita força. A grande força estava no interior, com o gado. Fortaleza era só um reduto com a sede política”, diz o historiador.
Para o especialista, entender o histórico da transposição do Rio São Francisco permite que as pessoas não se enganem por discursos políticos. “A ideia de transposição para a seca não é natural. Ela faz a gente se situar melhor ante essas falas de que existe um pai da transposição, de que ela sempre foi projetada e que existe um herói. Longe de heroísmos, pelo contrário, é um projeto que se faz nessas teias de poder”, reforça.
Em 2016, o especial d’O POVO À Espera de Francisco produziu um infovídeo demonstrando as etapas da transposição do Rio São Francisco. Confira:
(Com informações da Agência Senado)