Data Magna do Ceará: primeira província a libertar escravizados manteve exploração mesmo após abolição, aponta historiadora
O POVO conversou com historiadoras a fim de entender o processo de abolição no Ceará. Estado foi a primeira província a libertar seus escravizados e até passou a ser chamado de "Terra da Luz". Essa abolição, no entanto, foi feita por quem e para quem?
13:55 | Mar. 24, 2020
“Você pode contar nos dedos de uma mão só quais são as pessoas de cor nesse quadro”, aponta Sílvia Maria Vieira, professora de história da rede de ensino estadual e doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). A crítica da professora diz respeito ao processo de abolição no Estado que, segundo ela, foi majoritariamente encabeçado pela elite branca cearense. No dia 25 de março de 1884, o Ceará se tornava a primeira província do Brasil a assinar a abolição.
Para Sílvia, no entanto, esse é um processo inacabado, forjado. Apesar de achar o feriado importante, entende que ainda não há uma cultura de discussão sobre o que o dia realmente significa. “Não tem essa cultura dentro das escolas, poucas pessoas conhecem a história (do dia 25). Ainda está distante de nós o conhecimento sobre o papel da população escravizada em todo o processo”, argumenta.
O movimento abolicionista cearense não tinha a cara da população escravizada, segundo Sílvia. Homens brancos, geralmente senhores de engenho, costumavam decidir os rumos da gente explorada. Foram também eles que no dia 25 de março daquele ano assinaram a abolição, o que fez com que o Ceará passasse a ser conhecido como “Terra da Luz”.
Um ato na antiga praça Castro Carreira, hoje praça da Estação, no Centro de Fortaleza, marcou o momento. Quem conta isso é a historiadora Ana Sara Cortez, da UFC. Ela complementa: “Nós temos uma libertação que leva nome de Terra da Luz, mas não temos as luzes da liberdade pairando de fato”. Até 1886, segundo Sara, o Ceará ainda manteve seu sistema escravocrata, principalmente em cidades do interior sul do Estado.
> “Escravizado” e não “Escravo”: para a historiadora Ana Sara Cortez, é importante que deixemos de usar o termo “escravo”. Segundo Sara, o adjetivo coloca a situação de exploração como algo “natural”. O que descendentes de africanos e indígenas sofreram no Brasil foi um processo de “escravização”, onde tiveram seus corpos exaustivamente explorados em prol de produção econômica
A invisibilização dos movimentos de negros e negras exploradas é apontada pelas duas pesquisadoras como um dos fatores que tornam a abolição no Ceará um processo “forjado”. Simultaneamente ao movimento abolicionista dos senhores de engenho, os escravizados já se articulavam pela sua liberdade - o que desmente o mito de passividade desse povo, que por vezes são colocados como pessoas que não reagiram à crueldade que lhes era imposta.
“Já existia movimento de escravizados, como formação de quilombos, o movimento de Jangadeiros, liderado por Dragão do Mar. Autores apontam que alguns municípios no Ceará tinham mais escravizados do que pessoas livres.”, explica Sílvia. Segundo ela, o movimento abolicionista não estava preocupado com essa população, mas sim com questões mercadológicas.
Também para Sara, a libertação dos escravizados no Ceará aconteceu muito mais por pressão e constrangimento estrangeiro do que pelo cuidado com negros, negras e indígenas, peças também importantes na compreensão da história cearense. De acordo com a historiadora, até 1889, mesmo após assinatura da Lei Áurea, que libertava escravizados brasileiros, houve tentativas de manter população africana e seus descendentes sob exploração.
A partir de 1850, aqui no Ceará, deu-se início ao que autores chamam de Tráfico Interprovincial, quando estados do Norte e Nordeste vendiam escravizados para região Sul do País. Esse foi um dos movimentos responsáveis pela persistência da escravidão no Estado, mesmo após 1884.
População escravizada voltava a trabalhar para antigos senhores mesmo após abolição
“Vender escravizados significa separar famílias, desestruturar a organização dessas famílias. Nós temos o processo, o evento do dia 25, mas continuamos escravizando. Não faria sentido a gente comemorar a data se realmente soubéssemos o que aconteceu”, acrescenta Sara Cortez, historiadora da UFC.
Mesmo após assinatura da liberdade em 25 de março de 1884, muitos escravizados voltaram a trabalhar para seus antigos senhores, muitos sem remuneração. Segundo Sílvia Maria, professora de história, eles faziam isso por necessidade, já que a política do movimento abolicionista não pensou no pós-abolição - uma realidade não só do Ceará, mas do Brasil.
Os autores do livro “Além da Escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação", Rebecca Scott, Frederick Cooper e Thomas Holt, chamam atenção para a temática. A obra coloca em relevo “a necessidade de trabalhos comparativos para o amadurecimento dos debates sobre as sociedades no pós-emancipação”.
“O que significou para sociedades escravizadas a passagem para uma sociedade livre?” é uma das perguntas que norteiam a pesquisa.Sobre isso, Sílvia defende que o processo de ideologia racista existente na época tece até hoje as relações. “Isso reverbera até hoje: a ideia de que o negro é fora da lei, que coisa de preto é coisa ruim”, conta.
Para ela, é preciso conhecer a história do dia, “mas não há muito o que se comemorar, mas sim problematizar”.
O feriado estadual
A iniciativa de tornar a data um feriado estadual veio do deputado Lula Morais, que apresentou uma Emenda Constitucional aprovada em dezembro de 2011 pela Assembleia Legislativa do Ceará e promulgada com divulgação no Diário Oficial do Estado.