"Dia do Índio deve ser visto como uma data de lutas e não apenas de folclore", afirma pesquisadora

O POVO Online conversou com pesquisadores e lideranças indígenas a respeito da luta por direitos no Estado

00:34 | Abr. 19, 2019

Por: Leonardo Maia
Festa do milho na reserva indígena Pitaguary (foto: Thiara Montefusco/Governo do Ceará)

O Dia do Índio, comemorado nesta sexta-feira, 19, rememora o primeiro Congresso Indigenista Interamericano, que aconteceu em 1940 no México e tinha como objetivo reunir líderes de diversas regiões do continente para zelar pelos seus direitos. A data foi instituída em 1943 no Brasil pelo presidente Getúlio Vargas.

Para a professora Tereza Vasconcelos, professora de Geografia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), essa é uma data ainda comemorada como algo folclórico, mas deveria ser pautada principalmente no fortalecimento das lutas por direitos indigenistas.

Celebrar a memória dos seus antepassados e ter uma educação com características indígenas são formas que cada povo encontra para perpetuar sua existência, constantemente ameaçada de extinção. A luta, entretanto, não é só para a perpetuação. Além dos 14 povos indígenas registrados, outros grupos buscam entrar para as estatísticas oficiais.

De acordo com Ceiça Pitaguary, coordenadora-geral da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince) e integrante da Coordenação de Igualdade Racial do Governo do Ceará, além das 14 etnias, outros grupos também estão se organizando.

“Temos assembleias todos os anos, onde é demandado quem aparece e pede reconhecimento. Um dos povos que surgiu no ano passado é o povo chamado Jaguaribara, apelidado de Karão, por conta do cacique deles. Eles estão ali perto dos Kanindé, em Baturité”, conta Ceiça.

A demarcação de terras deve cumprir legalmente quatro fases: identificação e delimitação, demarcação física, homologação e o registro das terras indígenas.

Tereza comenta que o processo demarcatório, principalmente na última fase, passa por muita interferência do setor econômico, como o agronegócio,o turismo e a especulação imobiliária. Ela considera que o número de povos indígenas reconhecidos pelo poder público é muito diferente do que realmente existe devido à essa interferência.

No Ceará, há apenas uma terra totalmente regularizada pelo Estado, que é a terra indígena Córrego João Pereira, no município de Itarema (dos índios Tremembé). Os outros processos ainda encontram-se em curso. De acordo com Ceiça, apenas a reserva dos Anacé que foi diferente, “pois o Governo do Ceará comprou a terra e criou a reserva (primeira reserva indígena do Estado)”

Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara,Tapuia-Kariri, Tremembé,Tubiba-Tapuia e Tupinambá. Estas são as 14 etnias indígenas que vivem no território do Ceará, de acordo com o Governo do Estado do Ceará.

Com mais de 26 mil indígenas aldeados, o Estado é o oitavo estado brasileiro com maior população indígena. Até hoje, são 449 áreas regularizadas no Brasil, do total de 679 contabilizadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

Os primeiros povos

No Ceará, os primeiros povos indígenas estavam concentrados em pontos específicos, como o município de Itarema, Viçosa do Ceará e no Vale do Jaguaribe. Segundo Tereza, essas características ainda podem ser observadas nos povos dessas regiões, tanto em relação aos costumes, como a pesca e o artesanato, mas também aos atributos físicos.

A pesquisadora explica que devido a guerras, as aldeias passaram por diásporas e acabaram se espalhando pelo território, inclusive para a Capital, que tem alguns bairros, como a Paupina, com origem indígena.

Um exemplo desses confrontos foi a Guerra dos Bárbaros, um conflito que envolveu colonizadores portugueses e indígenas de etnias tapuias (que não falavam tupi) no fim do século XVII. Com aliança dos dois lados, o conflito teve batalhas sangrentas e durou pelo menos trinta anos.

Os embates causaram, entre outros danos, a extinção de várias etnias. A professora explica que hoje algumas dessas ressurgem após pessoas e grupos se dedicarem a um estudo de sua ancestralidade e se identificarem como indígenas. “Para além dessa descoberta, é preciso ainda ter coragem, porque não é fácil se identificar como um povo indígena diante de todo o processo de dizimação”, ressalta.

Florêncio Sales, mobilizador social da Associação Missão Tremembé (AMIT), participa do grupo desde 1995 e celebra o momento positivo para o ressurgimento de grupos indígenas. “Muitos grupos ficaram em silêncio por muitos anos devido a perseguições e assassinatos, mas agora estão se mostrando, e nós damos todo o apoio.”

A luta pelos direitos indígenas

Além da busca pelo direito à terra, por meio da demarcação, os indígenas lutam por outras conquistas garantidas na Constituição de 1988, como a saúde e a educação diferenciada, baseadas nos seus princípios culturais.

João Venâncio, cacique da etnia Tremembé no município de Itarema, comenta que essa é uma briga por algo que pertence aos indígenas. "Nós como primeiros nativos temos que enfrentar essa briga como uma queda de braço, as conquistas ainda são muito poucas. Quando eles dão uma coisa com a mão eles estão tirando com a outra”, relatou.

O cacique ressalta também que houve um diálogo muito interessante há alguns anos com o atual secretário de Articulação Política do Governo do Estado, Nelson Martins. Em 2017, ele chegou a receber representantes de 20 tribos indígenas do Ceará, após uma manifestação que envolveu cerca de dois mil índios e percorreu os bairros Meireles e Aldeota. Segundo o Venâncio, Nelson se distanciou um pouco do movimento, mas está buscando uma reaproximação.

Ele reclama que a questão indígena no Ceará ainda remete a algo muito folclórico, sempre com a figura do índio estereotipada, que precisa estar “pintado ou trajado”. Para João, ainda que seja necessário refletir acerca da figura do índio e como ele é visto na sociedade, a preservação da cultura tem como ponto principal as atividades dentro da aldeia.“Nós precisamos respeitar nossa cultura e saber que temos uma tradição”, ressalta.

Educação para indígenas

A educação praticada em grandes capitais e até mesmo em cidades de menor porte é, de fato, muito urbanizada, de acordo com a professora Tereza Vasconcelos. Ela explica que essa incompatibilidade com o modo de vida agrário dos indígenas pode limitar a construção do conhecimento.

“Deve-se mudar tanto o currículo como a arquitetura das escolas, respeitando realidades e contextos dos povos indígenas”, pontua a professora, lamentando que a maior carência é em relação ao ensino médio, onde muitos jovens interrompem seus estudos ou vão para uma escola não diferenciada.

O direito à educação diferenciada é, como já citado, uma conquista garantida pela Constituição. De acordo com o decreto nº 6.861/2009, as escolas que atendam essa demanda devem ser organizadas “com a participação dos povos indígenas, observada a sua territorialidade e respeitando suas necessidades e especificidades”.

O decreto fala também que devem ser respeitados os hábitos alimentares dos povos, considerados “práticas tradicionais que fazem parte da cultura e da preferência alimentar local”.

A deficiência é ainda maior quando se trata do ensino superior. O cacique João Venâncio ressalta que ser o único indígena de uma universidade é um “sofrimento muito grande”. Para ele, é fundamental que a educação se baseie em um diálogo entre a cultura indígena e os conhecimentos abordados na faculdade. O ensino no próprio aldeamento também seria uma vantagem, pois os jovens competiriam entre si.