Alas conservadoras da Igreja Católica ainda resistem a abençoar uniões LGBTs
00:04 | Dez. 20, 2024
Há um ano, Papa Francisco autorizou padres a conceder bênçãos para uniões homoafetivas. No Brasil, ainda são poucos os casais católicos que solicitam esse tipo de prece."Amor à primeira vista": é assim que Pamella Barbosa, de 38 anos, descreve o dia em que conheceu Érika Guerreiro, de 37. Foi em um ensaio de música para uma missa de domingo. Em junho de 2021, Érika começou a tocar violão no ministério em que Pamella canta até hoje. "Em razão dos traumas que sofri e dos dilemas que vivia, passamos a nos odiar. Era uma forma de repelir o sentimento que brotava", recorda Pamella, uma goiana de Ceres. "Mesmo quando nos distanciamos, tive certeza de que foi Deus quem nos aproximou. Sabia que, um dia, Ele mostraria um lugar onde pudéssemos viver nossa fé sendo quem somos", completa Érika, uma paraense de Belém. Quase dois anos depois, em um momento de crise, Érika se aproximou de Pamella e deu início a uma amizade. No entanto, ao notar que essa convivência despertava outros sentimentos, Pamella se afastou de Érika. "Por acreditar que esse relacionamento era pecado e me afastaria de tudo que eu mais amava, que era servir a Deus, expulsei Érika da minha vida", relata. "O tempo em que passamos longe uma da outra foi um tormento. Já estávamos apaixonadas e a distância causava sofrimento. Até que nos rendemos ao amor e começamos a namorar em abril de 2023." Em 23 de março, Pamella e Érika receberam a benção aprovada pelo Papa Francisco a casais do mesmo sexo. Há exatamente um ano, o Vaticano passou a autorizar padres da Igreja Católica a abençoar relacionamentos entre casais homossexuais. A autorização foi anunciada no dia 18 de dezembro de 2023, através do documento Fiducia Supplicans (Confiança suplicante). "Benção é uma prece feita a Deus em favor de alguém", explica o padre Luís Corrêa Lima, professor do Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de Teologia e os LGBT+ – Perspectiva Histórica e Desafios Contemporâneos. "Qualquer pessoa, casada ou não, pode receber." "No caso da benção a casais do mesmo sexo e a casais em situação irregular [incluindo divorciados recasados], não se trata de matrimônio, um dos sete sacramentos da Igreja, mas de uma prece pelo bem de pessoas que vivem juntas", acrescenta. Homofobia X decisão pastoral A bênção de Pamella e Érika não foi concedida pela paróquia onde elas se conheceram em 2021, mas pela comunidade jesuíta que frequentam desde 2023. "Não chegamos a pedir a benção ao nosso pároco. Temos convicção de que, se pedíssemos, seria negada", afirma Pamella. "Participamos de uma comunidade muito conservadora." Atualmente, Pamella e Érika frequentam a paróquia Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora das Mercês e a comunidade dos padres jesuítas do Centro Cultural de Brasília (CCB). Na paróquia, elas não assumem seu namoro por medo de serem impedidas de continuar o serviço a Deus, sua maior paixão. Na comunidade, são aceitas como casal. "Lá, podemos exercer nosso dom sem medo de punição, preconceito ou repressão", orgulha-se Pamella. Os padres não são obrigados a conceder a bênção, diz o documento Fiducia Supplicans. No entanto, casos de homofobia devem ser denunciados por não refletirem o espírito de acolhimento cristão. "Recomendamos que, diante de uma recusa ou discriminação, as pessoas procurem comunidades onde sejam respeitadas e acolhidas", orienta Luís Rabello, da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+. "Denunciar situações de homofobia também é necessário, mas é importante distinguir um ato discriminatório de uma decisão pastoral." Preconceito e medo Pamella e Érika conheceram a comunidade jesuíta do Centro Cultural de Brasília (CCB) por intermédio do grupo Diversidade Cristã de Brasília (DCB). Foi lá, em setembro de 2023, que descobriram que "ser homossexual não é pecado, é dom de Deus", afirma Pamella. O DCB é um dos 23 grupos que fazem parte da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT. "Conhecemos pessoas incríveis que nos mostraram que, para viver nossa sexualidade, não precisamos abandonar a Deus ou a Igreja. Podemos servir como casal, sem precisar mentir. Foi o primeiro lugar, na Igreja e na sociedade, onde nos sentimos seguras para assumir nossa identidade de pessoas LGBT." Nem sempre foi assim. Pamella já sofreu preconceito dentro de um movimento da Igreja Católica do qual participa desde os 15 anos. "Sempre escondi, e até lutei contra a minha homossexualidade. Fui doutrinada a acreditar que era um pecado mortal", relata. "Essa ‘teologia' me aprisionou por anos e gerou dores e traumas profundos." Érika, ao contrário, sempre foi mais tranquila em relação a sua orientação sexual. Na capelinha de Lourdes, nunca sentiu rejeição ou sofreu preconceito. "Sempre vivi em um ambiente de acolhimento e inclusão", conta. Em uma certa ocasião, um coordenador desconfiou da orientação sexual de Pamella e convocou uma reunião com os demais líderes do movimento para intimidá-la. "Talvez tenha sido o pior momento da minha vida", afirma. "Me vi cercada por pessoas que me julgavam e condenavam por desconfiarem que eu era homossexual. E eu, sozinha, adolescente e imatura, não tive alternativa a não ser mentir e, a partir daquele momento, reprimir minha sexualidade." Na paróquia onde Pamella e Érika se conheceram, não há Pastoral da Diversidade Sexual. No futuro, elas pretendem criar um grupo de diversidade sexual. Isso ajudaria, acreditam, a desmistificar a ideia de que homossexualidade é pecado, a promover o respeito e a acolhida a pessoas LGBT e, principalmente, a combater casos de homofobia. "A mentalidade de que ser homossexual é pecado faz com que muitos, especialmente jovens, abandonem a Igreja Católica quando iniciam um relacionamento amoroso", observa Pamella. Curiosamente, nem a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem uma Pastoral da Diversidade Sexual. Segundo o site da instituição, são, ao todo, 24 pastorais – nenhuma delas trata do tema. No passado, houve duas pastorais da diversidade sexual no Brasil: uma em Nova Iguaçu (RJ) e outra em Belo Horizonte (MG) – as duas tiveram suas atividades encerradas por decisão dos respectivos bispos. Diálogo mais inclusivo Não há estimativas oficiais sobre o total de casais homoafetivos abençoados desde a decisão do papa, há um ano. "A decisão do Papa abriu uma porta para um diálogo mais inclusivo, mas também gerou reações variadas dentro da Igreja", afirma Rabello. "Essa resistência pode ser atribuída ao caráter plural da Igreja que reflete diferentes posturas e interpretações em relação às orientações pastorais." Só o padre Luís Corrêa Lima, concedeu bênção a cinco casais homoafetivos. "Por ora, não esperava mais", avalia. E explica o motivo: "Trata-se de algo muito novo, que ainda não se enraizou na cultura do ambiente católico brasileiro. Como há um histórico de forte rejeição religiosa às uniões do mesmo sexo, a mentalidade custa a mudar. É necessário esclarecimento e difusão", afirma o sacerdote. A psicóloga Maria Cristina Furtado começou a se interessar pelo tema em 1999 quando Cristiane, sua filha mais velha, na época com 21 anos, descobriu ser lésbica e comunicou sua descoberta à família. Hoje, Maria Cristina é doutora em Teologia Sistemática pela PUC-Rio, publicou o livro A Igreja e as Pessoas LGBTQIAPN+ e dirige o Centro de Estudos de Gênero, Diversidade Sexual e Violência, no Rio de Janeiro. "Houve resistência por parte da ala mais conservadora da Igreja, que acredita que nada deve ser mudado. Em compensação, conheço casais felizes por terem realizado o sonho de serem abençoados e padres realizados por terem abençoado casais LGBTQIA+", afirma Furtado. "A meu ver, era essa a intenção do Papa Francisco. Acolher e abraçar a todos com carinho. Afinal, como o Santo Padre mesmo disse: ‘A Igreja é para todos!'", destaca. Vinte e cinco anos depois, Cristiane tem 46 anos e vive, há oito, em união estável. "Minha filha se afastou da Igreja e nunca mais retornou", afirma Furtado. "Quando as duas se uniram, em 2016, eu, meu marido e os pais da minha nora as abençoamos. Ela e minha nora são muito felizes. Onde o amor está, Deus está presente." Autor: André Bernardo