Cercada por anel de fogo, São Paulo sufoca com a poluição
Queimadas na Grande SP se somam a incêndios pelo país e geram pior período de contaminação do ar em 30 anos, apontam especialistas. Estado deve bater recorde de incêndios florestais.
00:01 | Set. 17, 2024
Por Gustavo Basso
Quando abriu a janela de casa na manhã da última quinta-feira (12), a vendedora Tarciana Moreti se chocou com a paisagem que viu. "Foi um sufoco, porque estava tudo coberto de fumaça. Parecia névoa, mas com cheiro muito forte. Minhas filhas e eu tivemos de sair de casa todas de máscara, e ainda assim não conseguia respirar", reclama.
Na tarde anterior, Moreti e vizinhos assistiram às chamas se aproximarem de suas casas. "Chegou muito perto… Queimou pé de bananeira, pé de goiaba, logo no quintal de trás, no vizinho também. É assustador", diz a moradora de Campo Limpo Paulista, vizinha à Grande São Paulo.
Ao longo das duas margens da rodovia Edgard Máximo Zambotto, onde ela mora, o fogo consumiu aproximadamente 3 mil hectares de vegetação, boa parte dela Mata Atlântica preservada. Foi o maior incêndio ocorrido nas últimas semanas, em um fenômeno que vem sufocando a capital paulista junto com a poluição de veículos movidos a combustível fóssil: um anel de queimadas na região metropolitana que já alcançou, apenas nas duas primeiras semanas de setembro, 38 dos 39 municípios da Grande SP.
A região metropolitana acompanha o aumento nas queimadas observadas em todo o Brasil, mas que explodiu em São Paulo. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cuja série histórica vai até 1998, mostram que 2024 já é o segundo pior ano de queimadas no estado. Ao longo dos primeiros 8 meses e meio, foram 7.193 focos de incêndios, contra 7.291 ao longo de todo o ano de 2010 – um recorde que deve ser superado em breve. Em relação a 2023, o aumento foi de 441%.
Tamanha alta dos incêndios criminosos – especialistas atestam a falta de raios que pudessem provocar ignição na região – sufoca os moradores do entorno. E prejudica em medida semelhante os moradores da maior metrópole do país, onde a dinâmica de ventos acaba acumulando a fumaça deste anel de fogo, somada à de outras regiões do país ainda mais incendiadas, como o Centro-Oeste, e à poluição provocada sobretudo por veículos automotores.
Por causa disso, a capital paulista chegou a figurar por vários dias seguidos como a metrópole com o ar mais poluído do mundo, segundo um ranking do site suíço IQAir. "As concentrações de poluentes que nós estamos tendo nestas últimas semanas são concentrações equivalentes àquela época de Cubatão, algo crítico de 30 anos atrás que uma geração inteira não havia vivido", atesta a professora Maria de Fátima Andrade, do Instituto de Astronomia Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP.
Há pelo menos 18 anos ela pesquisa a ação do ozônio e dos materiais particulados na atmosfera da Grande São Paulo. Andrade explica que nesta época do ano a concentração de materiais particulados – o mais nocivo para a saúde humana – já é mais alta, mas este ano difere dos demais pela proximidade geográfica das queimadas.
Houve queimadas muito intensas em outras partes do país em outros anos, afirma Andrade, mas a poluição gerada por esses eventos não baixava totalmente até o nível do solo na região metropolitana por causa das dinâmicas de vento. "As queimadas estão muito próximas, então não sofre diluição, não chega nem a subir a camadas mais altas da atmosfera", afirma.
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Material particulado e venenoso
A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) monitora em tempo real a qualidade do ar em dezenas de municípios paulistas e diferentes pontos da capital. Um dos seis poluentes analisados é o "MP2.5", sigla para Material Particulado de até 2,5 micrômetros – partículas extremamente finas em suspensão, e particularmente perigosas porque chegam aos pulmões e penetram na corrente sanguínea.
"Elas circulam por todo o corpo, então é enganoso achar que esses materiais são ruins só para os pulmões", observa o gerente nacional de pesquisa médica Rodrigo Sardenberg. À frente do grupo Hapvida Notredame Intermédica, ele acompanha os atendimentos e internações em quase 90 hospitais da rede, e esclarece a gravidade representada pela inalação dos MP2.5.
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"Elas são ruins também para as coronárias, para o coração, para o cérebro… Há relatos de problemas pulmonares, mas também de casos de infarto agudo do miocárdio e também de AVC [Acidente Vascular Cerebral]", alerta o cirurgião torácico. Esses eventos são provocados pela obstrução de artérias do cérebro e do coração. "Nós já temos nesse momento o relato de óbitos de mais de 70 pessoas no último mês de agosto e setembro por conta de doença respiratória grave; provavelmente pessoas que já tinham algum fator de risco que acabou agravado pela poluição", aponta.
Dados da Cetesb mostram que o índice de MP2.5 nas regiões mais contaminadas da capital paulista foi em média de 120, com picos de 163 no dia 9 de setembro. Na mesma época de 2022, ano menos incendiário já registrado em São Paulo, esse índice ficou em média em 54, com pico de 115, também no dia 9 de setembro. Os números sugerem o quanto as queimadas no entorno de São Paulo aumentam a concentração de poluentes na cidade, cobrindo o céu da capital com um manto cinza ao longo de duas semanas.
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Desesperos particulares
Moradora da região sul da cidade, Almut Lenk vinha há dias sentindo-se impotente diante da contaminação do ar da cidade e com a impossibilidade de fazer qualquer coisa que mudasse o cenário. Foi quando descobriu que a casa da mãe, em Várzea Paulista e também às margens da rodovia SP-354, estava ameaçada pelo fogo que se espalhava em inúmeros focos pela Serra dos Cristais, uma continuação da Serra da Cantareira. Aproveitou dias de folga para lutar contra as chamas que se espalhavam sem controle.
"Sábado passado, nós fizemos essa trilha até o pico mais alto desta serra, e estava a coisa mais linda, apesar de já ter um excesso de fumaça no ar. Já era algo até um pouco apocalíptico. Mas aí hoje a gente se depara com essa visão de tudo queimando, tudo preto, tudo morto… É tudo muito rápido e muito triste" lamenta ela.
Contando apenas com o apoio de um amigo voluntário, que também saiu de São Paulo para a tarefa, ela acaba se rendendo após algum tempo combatendo o fogo sem sucesso. Seria necessário mais pessoas e equipamentos. Devido ao número de focos, bombeiros apoiados por um helicóptero da Polícia Militar combatiam em áreas consideradas mais sensíveis, deixando outros terrenos descobertos.
"Diante desse calor, dessa queimada, eu já tinha apagado toda a faixa de fogo de lá de cima até aqui, mas sem os equipamentos corretos, né, a gente não consegue fazer o rescaldo, e já está tudo de novo em labareda", diz a professora. "A sensação é de que não vai ser possível; mesmo com todo o esforço, infelizmente, não vai ser possível."
Ao final da tarde, o cenário apocalíptico se mantinha, e cada um lidava com seu desespero particular. Enquanto Lenk tentava conter as chamas, a caseira Eliane Pires só tentava chegar em casa, após o dia inteiro trabalhando preocupada em um condomínio próximo. Conferir que as filhas e as netas que ficaram em casa estavam saudáveis, apesar do fogo e da fumaça, era o único objetivo da mulher de 54 anos.