Comunidade trans se mobiliza em apoio às vítimas no RS

Autor DW Tipo Notícia

Iniciativa busca atender demandas específicas de pessoas trans que foram atingidos pelas enchentes. Além da catástrofe climática, grupo sofre ainda com o preconceito.Quando as enchentes atingiram Rio Grande (RS), Mahin Domingues, coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), e sua esposa correram para tentar proteger livros e documentos na pequena biblioteca que têm em casa. Não demorou para que a Defesa Civil solicitasse que o casal deixasse sua residência e procurasse abrigo. Mas, para um homem trans como Mahin, encontrar abrigo não foi tão simples. "Logo que cheguei e comecei a fazer meu cadastro, percebi movimentações ao meu redor que me fizeram entender que aquele lugar não era seguro para mim", conta. Para membros da comunidade trans, que inclui homens e mulheres transgênero, travestis, pessoas não binárias e intersexo, dentre outras, as enchentes no Rio Grande do Sul escancararam uma realidade de desigualdade e violência. "Nós recebemos denúncias de casos de transfobia dentro dos abrigos, desde violências estruturais e disfarçadas, até casos de pessoas agredidas e violentadas", afirma Luka Machado, travesti, atriz e produtora cultural. Isso inspirou Luka e o amigo Gustavo Deon, o Gus, homem trans e, como ela, ator e produtor cultural, a criar a Ajuda Trans, uma rede de apoio e solidariedade com o objetivo de transcentrar a ajuda à população trans atingida pelas enchentes em todo o estado. "Nós formamos uma rede para contornar a transfobia e proporcionar um espaço seguro para todos: tanto para as pessoas trans atingidas, quanto para quem queria ajudar", conta Luka. Hoje, essa rede conta com 125 atingidos, 128 voluntários e 14 psicólogos. O trabalho da Ajuda Trans teve início com o levantamento e mapeamento desse grupo através de formulários online e da busca ativa em abrigos. "Fazemos questão dessa busca presencial porque ainda tem muita gente com acesso limitado à internet e inclusive pessoas que mesmo antes das enchentes não tinham celular", conta a voluntária Helena Sant'Ana, mulher trans, mestranda em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O formulário inclui questões como nome, pronome, identidade de gênero, raça e deficiência, além do local onde vivem ou estão se abrigando. Para voluntários, também solicita informações sobre como podem ajudar. Dessa forma, a Ajuda Trans tem mobilizado ações que vão desde o emergencial, como doações de alimentos, roupas, cobertores, colchões e medicamentos, até a resposta às necessidades específicas da comunidade, que passam batidas na maioria das vezes. "Nós recebemos, por exemplo, pedidos de absorvente para pessoas trans masculinas e não binárias que muitas vezes se sentem desconfortáveis em solicitar esses artigos, ou mesmo que não os recebem após solicitar", conta Gus. "Uma das primeiras demandas que tivemos quando criamos o formulário foi de binders, um tecido elástico muito usado por pessoas trans masculinas e pessoas não binárias para apertar os seios de modo a reduzir sua aparência." Luka explica que, aquilo que cisgêneros – quem se identifica com o sexo biológico – costumam considerar como vaidade, para pessoas trans é uma questão de saúde mental, dignidade e, muitas vezes, de sobrevivência. "O nosso único objetivo é que ninguém seja esquecido", ressalta. Transfobia Ambiental O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, registrando uma morte a cada 38 horas, segundo o Observatório de Mortes e Violências LGBTI+. Além disso, a população trans no Brasil tem uma expectativa de vida de 35 anos, enfrenta uma taxa de desemprego ou emprego informal três vezes maior do que a população em geral e tem mais dificuldade no acesso a moradias dignas. Essas condições fazem com que esse grupo esteja menos equipado para enfrentar o impacto de catástrofes ambientais como as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul. Embora existam poucos dados sobre a realidade da comunidade LGBTQIA+, inúmeros estudos mostram que a crise climática funciona como um catalisador de desigualdades sociais. Experiências de crises, como os terremotos de 2010 no Haiti e o furacão Katrina em 2005 nos Estados Unidos, mostram como essa população é frequentemente revitimizada nas respostas emergenciais e nos processos de reconstrução. "Precisamos falar sobre transfobia ambiental, porque temos uma população trans em extrema vulnerabilidade diante da crise climática", diz Deborah Sabará, fundadora e coordenadora de ações e projetos da Associação Gold. "Esse é um primeiro passo para alcançar a justiça ambiental e climática." Para pessoas que pertencem a mais de um grupo marginalizado, a situação é ainda mais grave. "O racismo transfóbico é o que está mais latente e perverso neste momento no Rio Grande do Sul, em que a população trans preta está à mercê da catástrofe", afirma Jovanna Baby, travesti, presidente do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS). Um longo caminho pela frente Mas a caminhada não será fácil. Desde o começo da campanha, Luka e Gus têm sido alvo de inúmeros comentários transfóbicos. "Além das mensagens de ódio, muitos perguntam por que estamos ajudando só as pessoas trans. Mas existem várias ações para populações específicas como mulheres, crianças, comunidades indígenas. Nós estamos jogando luz para uma população que também tem suas especificidades", diz Luka. "Então, eu devolvo a pergunta: por que não ajudar as pessoas trans?" Com o passar das semanas, à medida que a crise começa a passar da fase emergencial para o momento de reconstrução, a Ajuda Trans também está se transformando. Se por um lado alguns voluntários já não têm mais a mesma disponibilidade, por outro, o foco em concretizar ações de longa duração tem ganhado centralidade. "Muitos ainda estão fora de casa, sem saber se e quando poderão voltar. Queremos que a Ajuda Trans possa ajudar nesse processo, além de trazer dignidade para essas pessoas", diz Gus. Ele e Luka acreditam que a rede pode vir a se tornar um espaço de apoio contínuo, de formação, de empreendedorismo e, principalmente, de fortalecimento de toda a comunidade. "O mais importante agora é manter esse vínculo para garantir acesso aos direitos e aos auxílios que virão com a reconstrução", diz Helena. "Talvez um dos maiores ganhos da nossa atuação tenha sido os dados que levantamos sobre a nossa população, que é algo que pode promover e informar políticas públicas de médio e longo prazo", acrescenta. "Não estamos nem perto de terminar. Este é apenas o início da caminhada", ressalta Gus. Autor: Amanda Magnani

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