Canções por justiça: o movimento musical atacado pela ditadura chilena

O golpe militar havia chegado apenas ao segundo dia, quando o professor e músico Víctor Jara foi levado para o Estádio Chile. Soldados esmagaram as mãos dele com coronhadas de fuzis, o mataram com 40 tiros e abandonaram o corpo em uma favela de Santiago. Com violência e sadismo, colocavam em prática o projeto de destruir a vida e a memória dos inimigos do regime. 

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Víctor era um dos nomes mais conhecidos de uma geração de artistas chilenos que viam a música como meio de transformação política e social nos anos 1960 e 1970. Com letras críticas à exploração dos trabalhadores e esperançosas sobre um futuro socialista, o movimento ficou conhecido como Nueva Canción Chilena (Nova Canção Chilena). 

Víctor Jara era um dos artistas chilenos que cantava contra a ditadura de Pinochet. Foto: Biblioteca Nacional de Chile

Os militares subestimaram o poder das canções e mensagens que o movimento transmitia. Em 2019, durante os maiores protestos que o Chile viveu desde o regime militar, milhões de pessoas saíram às ruas para exigir reformas sociais. E o legado da Nueva Canción ressurgiu com mais intensidade. Vários cartazes traziam em destaque o rosto de Víctor Jara. E uma música composta por ele se tornou o hino das multidões: El derecho de vivir em paz (O direito de viver em paz). 

Desde 2003, o Estádio Chile foi batizado com nome do músico e se transformou em um espaço de memória dos crimes cometidos pela ditadura. Também se tornou um lugar de encontro para aqueles que cobram justiça. Durante toda a segunda quinzena de setembro, está programado um festival de arte para lembrar os 50 anos do golpe e o papel da cultura na resistência ao regime. 

“A herança de Víctor Jara, Violeta Parra e tantos outros artistas segue presente na nossa sociedade e na América Latina. As novas gerações de artistas têm incorporado esse legado nas suas inspirações e criações”, disse Cristián Galaz em entrevista à Agência Brasil.

Ele é diretor executivo da Fundación Víctor Jara, que organiza o festival. 

No Brasil, também está sendo preparado um evento musical de memória e reflexão sobre a data. O Mil Guitarras Para Víctor Jara acontece no dia 30 de setembro em São Paulo, no galpão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), bairro dos Campos Elíseos. Um dos organizadores é o grupo EntreLatinos, que tem repertório focado no canto popular latino-americano. 

“Víctor Jara representa muito para nós. Ele era um artista envolvido em diversas linguagens, nutria um profundo amor pelo seu povo, por sua terra e pela cultura popular. Não só do Chile, mas de toda a América Latina. O trabalho cultural que ele desenvolveu, visando sempre a transformação social e a valorização da nossa cultura é um legado que tentamos seguir, assim como o legado da Nueva Canción Chilena. Víctor deu sua vida por isso e não podemos deixar cair no esquecimento o quanto isso custou a ele e a milhões de pessoas no nosso continente”, disse Francisco Prandi, integrante do EntreLatinos. 

Origens do Nueva Canción 

As origens do movimento Nueva Canción Chilena podem ser traçadas a partir da vida e do trabalho de Violeta Parra. Na década de 1960, a artista plástica e cantora interpretava músicas folclóricas e as adaptava para incluir críticas sociais. Um modelo que inspiraria outros músicos. Os filhos dela também tiveram papel importante. Isabel e Ángel Parra criaram a Peña de Los Parra, uma espécie de casa noturna para artistas mais ligados ao gênero musical impulsionado por Violeta, que passou a ser frequentada principalmente por jovens e intelectuais de esquerda. 

Outro marco foi o movimento de reforma universitária no Chile em 1967, que ocorreu em diferentes instituições educacionais do país, em busca da democratização do ensino. Nesse contexto, muitos vão entender a música como meio de intervenção política na sociedade. Víctor Jara – que era professor universitário de teatro, cantor e compositor – apoiou a reforma. Estudantes também criaram grupos musicais amadores, com destaque para o Quilapayún e o Inti-Illimani. 

Violeta Parra deixou legado de ativismo político por meio da música. Foto: Biblioteca Nacional de Chile

Eles inovaram no uso de instrumentos musicais e em tocar gêneros de diferentes países da América Latina. Antes, a maioria dos intérpretes de canções folclóricas tinha abordagem mais nacionalista, voltada para a cultura do Vale Central, região de Santiago e arredores. Muitos dos novos músicos eram filiados ou próximos aos partidos de esquerda, principalmente o Partido Comunista do Chile, o que refletia diretamente nos temas e nas letras das músicas. 

“As canções nesse contexto trazem muitas questões sobre a vida dos trabalhadores. Por exemplo, sobre a situação dos mineiros. A mineração no Chile já era muito importante, principalmente de cobre e de carvão. Também havia músicas que falavam dos camponeses e a exploração dos patrões”, explica a historiadora Natália Ayo Schmiedecke.

“E existiam ainda manifestações relacionadas às tradições indígenas. Independentemente dos problemas que esses músicos abordassem, entendiam que o simples fato de resgatar canções de origem quéchua ou aymará já era uma maneira válida de se opor ao imperialismo estadunidense”. 

Ideal socialista 

Violeta Parra morreu em 1967, mas deixou como legado o ativismo político musical. Nas eleições presidenciais de 1970, muitos artistas entenderam que era preciso se posicionar e trabalhar diretamente nas campanhas. Entre os que se colocaram ao lado do socialista Salvador Allende, estavam Victor Jara, Isabel e Ángel Parra, Sergio Ortega, e os conjuntos Quilapayún, Inti-Illimani e Aparcoa. Eles participaram de comícios e gravaram canções em defesa da candidatura, que foi construída em cima do lema “Não há revolução sem canções”. 

Nesse contexto, os músicos que se identificavam com o projeto político da Unidade Popular passaram a ser identificados pelo termo “Nova Canção Chilena”. Em comum, compunham e interpretavam canções que expressavam a esperança de novos tempos por meio do socialismo. O nome já havia sido usado como título de um festival de 1969, mas passou a designar um movimento político bem definido durante a campanha e o governo de Allende. 

Com a vitória nas urnas, eles continuaram apoiando o governo por meio de novas composições, eventos e até em cargos públicos. Isabel Parra, Víctor Jara, Inti-Illimani e Quilapayún foram nomeados Embaixadores Culturais do Governo Popular. Em 1971, passaram a integrar uma secretaria da Universidad Técnica del Estado (UTE) e ganhar salários para realizar apresentações durante o ano. Uma canção bem representativa desse momento é Manifiesto, de Víctor Jara. Ele defendia a música politicamente engajada, em oposição às letras vazias de mensagens e conformadoras de opressões.

“O canto tem sentido./ Quando palpita nas veias./ De quem morrerá cantando./ As verdades verdadeiras./ Não as lisonjeiras “baratas”./ Nem as famas estrangeiras./ Mas sim uma canção popular./ Até o fundo da terra./ Aqui onde chega tudo./ E onde tudo começa./ Canto que foi valente./ Sempre será canção nova”. 

Golpe e resistência 

O golpe militar de 1973 incluiu membros da Nueva Canción entre os inimigos a serem destruídos. Uma parte deles foi vítima de tortura e assassinato, outra teve de escolher entre a clandestinidade e o exílio. 

“O regime militar censurava toda produção musical associada à esquerda. Então, o simples ato de tocar instrumentos andinos já era visto com desconfiança, era desencorajado e poderia resultar em problemas”, explica Natália Schmiedecke.

“A Nueva Canción Chilena se desmantela nesse contexto. Depois, os músicos vão ter um papel muito importante de oposição, participando de festivais de solidariedade contra a ditadura chilena no exterior. Eles viajam muito em diferentes países do mundo levando essa mensagem de resistência”. 

Ainda no final da década de 1970, um movimento de continuidade ressurgiu no Chile sob o nome de Canto Nuevo, uma referência clara ao trabalho dos artistas anteriores. Para enfrentar a censura, eram compostas músicas com sonoridades diferentes, temas menos propositivos e mais reflexivos. 

O uso de metáforas também se tornou comum para mascarar críticas ao regime militar. Uma das estratégias era falar de problemas como desemprego, desabastecimento, poluição, entre outros, que não eram explícitos contra a ditadura, mas desafiavam a narrativa oficial militar de que o país estava em ordem e prosperando. 

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