Agência Brasil: Este levantamento já está sendo feito?
Selma Dealdina: Pretendemos apresentar o projeto aos representantes do Ministério da Cultura, durante o encontro nacional que realizaremos de 14 a 18 de junho. Deixando claro que este levantamento precisa ser feito por gente das próprias comunidades que, além de tudo, recebam a capacitação necessária. A ideia não é contratar alguns pensadores iluminados de fora da comunidade e mandá-los para os quilombos com seus modos de olhar as manifestações culturais de cada grupo. O olhar de quem vivencia o dia a dia das comunidades quilombolas pode até ser apaixonado, mas é mais apurado para [captar] os vários significados e importância dos fatos.
Agência Brasil: Além da valorização e divulgação da produção cultural quilombola, uma iniciativa como esta tem potencial de fomentar o turismo e a geração de renda local?
Selma Dealdina: Muito. Principalmente quando se trata de festas maiores, como a que acontece no Quilombo do Campinho da Independência, em Paraty [RJ]. Eventos assim geram ganhos para além da comunidade quilombola. Porque essas festas cumprem um ritual comunitário, motivando quem deixou a comunidade a visitá-la, mas também atraem outras pessoas que prestigiam os eventos. Então, há quem se hospede na cidade, quem coma nos restaurantes, use aplicativos ou táxis. Na própria comunidade quilombola há os ambulantes; há a venda de produtos e do artesanato feito por moradores. E estes, ao receberem, vão fazer suas compras no mercadinho, na padaria, movimentando a economia local. Nestas comunidades, R$ 10 mil em circulação já representa muito, principalmente porque é uma quantia que fica com quem efetivamente faz a festa. O mais importante, no entanto, é que estas festas e manifestações culturais tradicionais são uma oportunidade para as pessoas conhecerem a História do Brasil.
Agência Brasil: Em que sentido?
Selma Dealdina: Nós, brasileiros, não conhecemos a história dos quilombos e a exata importância dos negros e das negras para a construção deste país. O que estudamos nas escolas até há pouco tempo era uma mentira que só nos últimos tempos começamos a reescrever. A invisibilidade e a negação da participação negra na história faz com que as pessoas desconheçam a real história do país. E a situação dos quilombos é um exemplo disso. Boa parte das pessoas conhece um pouco sobre Zumbi dos Palmares, se tanto. E os que vieram resistindo após isso? E [a líder quilombola do século 18] Teresa de Benguela? [A abolicionista do século 19] Adelina, a Charuteira? Todas as pessoas importantes que não conhecemos?
Agência Brasil: Como a preservação dos costumes e das festas tradicionais pelas comunidades quilombolas dialoga com as ações de regularização dos territórios remanescentes de quilombos?
Selma Dealdina: Todas essas manifestações são levadas em conta durante a produção dos relatórios antropológicos. A história da comunidade é contada a partir das suas festas, do cemitério e da igreja locais, das pessoas mais velhas… Ela é contada sempre a partir de um fato, de um momento histórico, de uma luta que a comunidade travou. Ou seja, não é possível contar a história das comunidades quilombolas desassociadas de suas manifestações culturais, sem levar em conta os elementos históricos de organização social. Seja uma ladainha, uma reza, um forró ou um jogo de futebol – inclusive, não conheço nenhuma comunidade quilombola que não tenha ao menos um campo de futebol.
Agência Brasil: Ao contribuir para valorizar a cultura de determinado grupo e, em alguns casos, proporcionar renda, eventos tradicionais podem estimular as pessoas, principalmente os jovens, a permanecerem em suas comunidades?
Selma Dealdina: Ajudam, mas esta questão é bastante complexa. Não há, hoje, como manter um jovem no quilombo sem lhe oferecer determinados bens e serviços. Tem que preservar certas formas de manifestação da cultura local, mas também tem que ter internet no quilombo. Tem que ter uma escola de qualidade – e é importante dizer que há quilombos onde existem campus universitários. É necessário levar em conta que, assim como há quem queira ir para as cidades, há também os jovens que querem ficar [na comunidade], trabalhar na roça, viver do campo, mas sem abrir mão de ter um celular, um bom sinal de internet. E há aí uma outra questão, que é o direito de quem permanece em sua comunidade de origem a acessar os bens culturais aos quais quem está nos grandes centros urbanos têm acesso. Para isso, é preciso tornar a cultura um direito cidadão de fato. É necessário uma política de Estado. Até porque, isso impede que o governo A ou B desmanche o que seus antecessores criaram. Além disso, a cultura tem que ser transversal. Se nos quilombos há espaços como os Cras [Centro de Referência de Assistência Social], Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], associações, igrejas e escolas públicas, eles têm que ser utilizados como ferramentas de acesso público à cultura onde possam ser feitas apresentações de peças teatrais, shows musicais e outros eventos que a comunidade também quer ver.
Agência Brasil: Falamos bastante sobre a importância da cultura, mais qual é, atualmente, a principal reivindicação do movimento?
Selma Dealdina: Nossa principal luta continua sendo pela titulação dos territórios quilombolas. E não é de hoje. Há mais de 1,7 mil processos parados no Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. A demora na titulação dos territórios agrava o conflito no campo. Estamos falando de mais de 6,5 mil quilombos no Brasil, espalhados por mais de 1,6 mil municípios de 24 das 27 unidades federativas do país. Há quilombos urbanos que sofrem com a expansão imobiliária em torno das comunidades, que é o caso do Quilombo Sacopã, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul do Rio de Janeiro. Sem a titulação dos territórios quilombolas, não há como fazer muita coisa, mesmo havendo políticas públicas importantes. Como o Estado vai nos dar sementes se não tivermos terra para plantar? Como vamos construir novas casas para a comunidade que cresce se não há mais terras? E aí, voltamos ao fazer cultural que, como eu disse no começo, ocorre na base da teimosia, da resistência. Porque se você corre o risco de ser expulso a qualquer momento do seu território, todas as manifestações tradicionais associadas a aquele lugar, a aquele grupo de pessoas, tende a se acabar.