Entrar para o mercado informal, na maioria das vezes, significa perder renda. Segundo o IBGE, enquanto a renda média do trabalhador brasileiro era de mais de R$ 2,8 mil por mês no trimestre encerrado em fevereiro, os empregados informais do setor privado ganhavam R$ 1.914 em média. Os trabalhadores por conta própria sem CNPJ recebiam menos, R$ 1.739, e os trabalhadores domésticos sem carteira assinada, R$ 960. Todos esses valores são médios, o que significa que há uma parcela considerável abaixo deles.
A informalidade é a situação de cerca de quatro em cada dez trabalhadores em atividade no país, já que a taxa de informalidade da população ocupada nunca ficou abaixo de 38% desde 2015 e passou longos períodos acima dos 40%, entre os anos de 2017 e 2022. Fora os 38 milhões de trabalhadores informais, a aposentadoria também fica cada vez mais distante dos 9 milhões de desempregados - que procuram emprego e não encontram - e dos 4 milhões de desalentados - que já desistiram de procurar emprego.
O número de empregos formais no setor privado chegou a 37,7 milhões em 2014, e, desde então, se seguiu um período de sete anos com sucessivas crises econômicas e políticas, e esse patamar não foi mais atingido. No pior momento, após o período mais restritivo da pandemia de covid-19, em 2020, o número de pessoas ocupadas com carteira assinada no setor privado caiu para apenas 30 milhões - 7 milhões a menos que no pico, um contingente maior que a população da cidade do Rio de Janeiro.
A vice-presidenta da Associação Nacional dos Procuradores e Procuradoras do Trabalho, Lydiane Machado e Silva, prevê que a soma do mercado de trabalho atual com a Reforma da Previdência vai causar uma pressão maior na assistência social no futuro, porque o resultado serão muitos idosos empobrecidos ou sem renda.
"Se a gente faz uma reforma previdenciária com base no aumento da expectativa de vida, a gente tem que estar preparado para receber melhor essas pessoas e mantê-las vinculadas ao mercado de trabalho. Mas o que a gente vê hoje é totalmente distinto disso", avalia. "A experiência que vem com a idade muitas vezes faz a pessoa ter uma remuneração maior, e, quando a empresa quer reduzir custos, ela troca essa pessoa por outra que está começando agora. A gente não tem um mercado de trabalho receptivo aos idosos, embora a gente determine, com a Reforma da Previdência, que essas pessoas devem permanecer mais tempo no mercado. Fatalmente, essa pessoa vai cair na informalidade e em condições mais precárias de trabalho. Ou vai se conformar com um benefício previdenciário bem reduzido para não ficar sem nada [se aposentando antes do que planejava]".
A procuradora do trabalho alerta que a urgência em obter um salário somada a formas precárias de contratação vai continuar pressionando por informalidade e promovendo um achatamento da renda do trabalhador, o que pode diminuir as próprias contribuições à previdência social. O indício mais evidente dessa precarização, na visão dela, é o aumento do número de pessoas resgatadas em trabalho análogo à escravidão, que foi recorde no primeiro trimestre deste ano e está, muitas vezes, associado a empresas terceirizadas.
"Ao longo desses últimos anos, ao contrário do que as reformas pregavam no sentido de aumentar os postos de trabalho, o que a gente vê é um crescimento da informalidade e uma precarização dos postos de trabalhos já existentes, porque há uma reserva de trabalhadores desempregados tão grande que é muito tranquilo para o empregador substituir esse empregado por uma pessoa que ganhe menos", afirma ela. "Os benefícios previdenciários precisam garantir o mínimo de subsistência e, da forma como as coisas estão acontecendo aqui no Brasil, com essas sucessivas reformas previdenciárias, que não criam formas alternativas de arrecadação e somente aumentam os requisitos da concessão dos benefícios e pioram a forma de cálculo, a gente vai ver que esse mecanismo é insustentável. Em algum momento, o Estado Brasileiro vai ter que assumir a responsabilidade sobre essas pessoas que vão pressionar o sistema de assistência social".
Somente o básico
Coordenador dos índices de preços do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE/FGV), o economista André Braz tem entre os indicadores calculados por sua equipe aquele que mede a inflação da terceira idade, o IPC-3i. O cálculo parte da diferença da cesta de compras dos idosos, em que algumas despesas como planos de saúde e medicamentos têm mais peso, e outras, como transporte público, menos. Em um cenário de idosos mais empobrecidos, ele estima que essa cesta de compras ficará cada vez mais concentrada no básico para a sobrevivência.
“Cada vez mais concentrada em alimentação e algumas tarifas públicas, como energia, água e telefonia, de que a família não pode abrir mão. Isso significa uma perda da qualidade de vida, porque, se o idoso está vivendo mais, ele teria oportunidade de aproveitar a vida fora da rotina de trabalho, viajando, interagindo com outras pessoas, consumindo serviços de lazer como cinemas e teatros. Isso é o que se deseja com a terceira idade. Ter um comprometimento menor com saúde para ter mais recursos para investir na qualidade de vida. Infelizmente, com o comprometimento das aposentadorias, o que se vê é uma redução da qualidade de vida, por pouco acesso a serviços de lazer e saúde e por uma necessidade de comprar comida”.
Braz estima que essa já é a situação de idosos pobres, que gastam menos ou nada com planos de saúde, medicamentos e lazer. Para eles, os alimentos já estão no centro da cesta de compras. “Muitos idosos acabam sustentando descendentes que não conseguiram recolocação no mercado de trabalho. Muitos idosos são chefes de família, e, por isso, a família impõe a eles a responsabilidade por necessidades básicas que os impede de ter acesso àquilo que eles poderiam ter. Com isso, há uma queda na qualidade de vida do idoso pela configuração de sua família”.
A concentração da cesta de compras nas necessidades básicas ou mesmo a insuficiência de renda para arcar com o mínimo já é uma realidade para muitos entregadores e motoristas de aplicativos de transporte, entregas e sites de comércio eletrônico. Presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativo e Autônomos do Brasil, Edgar Franscisco da Silva, mais conhecido como Gringo, está preocupado com o futuro e o presente de seus associados, a maior parte sem a cobertura da previdência social.
"É uma profissão em que você vai notando que acontecem muitos acidentes, muitos mesmo, e essa pessoa fica sem respaldo nenhum por não contribuir com o INSS de forma particular. Muitos têm MEI, mas são poucos os que mantêm em dia o MEI. Então, isso preocupa muito a gente nesse primeiro momento. E, em um segundo momento, a gente vê que essa galera não vai ter aposentadoria", afirma. “A gente quase não vê alguém que faça contribuição autônoma. Não conheci alguém ainda que faça. Referente ao MEI, muitos abrem e nem sabem que estão cobertos pelo INSS quando estão pagando, e deixam vencer. A gente tem que fazer um trabalho de conscientização muito forte”.
Com remunerações que precisam dar conta dos gastos mensais das famílias e da manutenção das motos, esses motofretistas muitas vezes se veem com menos de um salário mínimo depois de descontados os custos para manter seu meio de trabalho funcionando. “É aí que a galera começa a economizar com coisas necessárias, deixando de se alimentar, deixando de fazer a manutenção, deixando de pagar o MEI, deixando de fazer o seguro de vida. Ele economiza com coisas necessárias e só piora a situação. A chance de acidente é muito maior, e, com o acidente, precisa da previdência”.
Adoecimento
Além de arriscada, a profissão causa um desgaste físico intenso, afirma Gringo, que conta que muitas vezes é difícil chegar a 10 anos como motofretista. Por isso, uma das reivindicações da categoria é ter direito a uma aposentadoria especial. “Às vezes, até com cinco anos de profissão, você já está sentindo fortes dores nas costas. Você cheira poluição o dia inteiro, está nessa situação em que em uma hora está frio e, em outra, está calor, fica exposto a uma tensão e estresse muito altos. Muitos vem achando que vão passar só um tempo, mas esse tempo se eterniza. Mas eu falo pra eles que nossa profissão é igual jogador de futebol e modelo. Tem um tempo que você vai exercer, mas, e depois, o que você vai fazer?”
Para o motofretista, muitos trabalhadores não acompanharam a discussão em torno da Reforma da Previdência e não se deram conta das mudanças que impactarão suas vidas diretamente, porque estavam muito concentrados em necessidades imediatas de sobrevivência. “As pessoas estão mais preocupadas em estar vivas do que com o futuro. Eles não estão fazendo essas contas e muitos não sabem nem fazer. Eu não tenho como pensar no que vai acontecer daqui a 10, 15 ou 20 anos, sendo que eu estou em uma situação horrível agora e estou precisando viver agora. Essa situação precária faz com que a gente não tenha tempo para pensar no futuro. A gente vê o nível da situação quando o cara já está deixando de comprar as necessidades básicas. Pra ele, já precarizou o agora”.
Pesquisadora do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Cetesteh/Ensp/Fiocruz), Mônica Olivar relata que trabalhadores expostos a situações insalubres ou perigosas estão entre os que terão a saúde mais prejudicada, já que as aposentadorias especiais agora exigem também uma idade mínima, que vai de 55 a 60 anos, além do tempo reduzido de contribuição, de 15 a 25 anos. Antes, bastava cumprir esse mesmo tempo nos trabalhos nocivos à saúde para ter o benefício. Ela destaca que os mais pobres são os mais afetados, e que o cenário de idosos trabalhando para complementar a aposentadoria tende a ser mais comum, inclusive entre funcionários públicos.
“As reformas foram muito cruéis com a classe trabalhadora e prejudicaram principalmente os mais pobres. Trabalhadores e trabalhadoras que sempre usaram sua força carregando sacos de cimento nas costas, ou ambulantes que carregam mercadorias pesadas, ou catadores de materiais recicláveis, com o passar do tempo sofrem desgaste físico, psíquico e social e apresentam doenças osteomusculares, mas não tem direito a auxílio-doença, porque não conseguem contribuir, e nunca vão se aposentar. Essa reforma fere de morte grande parte da classe trabalhadora do país”.
Para ela, o cenário torna ainda mais urgente o fortalecimento da Política Nacional de Saúde do Trabalhador, criada em 2012, para que os centros de saúde do trabalhador sejam ampliados e para que todo o Sistema Único de Saúde tenha atenção a essas questões.
“Às vezes, o trabalhador chega com uma dor de cabeça na clínica da família, e o profissional de saúde não pergunta onde ele trabalha”, exemplifica ela. “A política tem que ser colocada em prática em qualquer serviço de saúde”.