Advogada especializada em direito econômico e social e ativista política, Hortense saiu do país para se proteger. “Saí do país fugindo de uma perseguição política, porque eu atuava em um partido da oposição. Na época, o país estava em uma crise política e uma guerra de invasão, e a minha perseguição ficou tensa quando eu participei de [grupos de] lideranças de jovens e juristas que organizaram um ato contra a modificação de alguns artigos da Constituição [do país].”
Ela lamenta não poder trazer as filhas. “Não era a minha previsão morar fora do país, naquela época só consegui trazer o bebê de colo, na minha condição não tinha como entrar em processo para conseguir visto para toda a família. Até hoje a minha família é partida, estou aqui, mas elas continuam lá até hoje.”
Dois anos depois que ela veio para o Brasil, o marido conseguiu vir e, aqui, eles tiveram dois filhos. Hortense vive no país com o registro de imigrante refugiada. “Não me naturalizei [brasileira], continuo sendo congolesa porque a condição do meu país não permite dupla nacionalidade”, explica.
Na falta de oportunidades profissionais, Hortense partiu para o empreendedorismo para sobreviver. É idealizadora do Espaço Wema, que promove a cultura africana. “Ainda não consegui me reintegrar à minha profissão. Então fui empreender com a ideia de um centro cultural, onde faço a promoção da cultura africana e uso a comida como meio de encontro, com rodas de conversa, atividades e oficinas de culinária típicas, onde contamos a história dos pratos, como fazer a comida, trabalhamos com a comida afetiva. Usamos a comida como meio de encontro e essa comida tem um precificação”, conta, ao falar sobre como faz para se manter economicamente.
Mulher no Brasil
Na visão de Hortense, a luta da mulher no Brasil é muito avançada. “Pelos seus direitos, pela sua autonomia, essa liberdade que já foi concedida à mulher brasileira é um avanço comparada à mulher no Congo, que ainda está presa pela cultura, pelas realidades cotidianas e as consequências do colonialismo. Ela está presa, sobretudo, a essa violência que está acontecendo no mundo contra a mulher e que influencia ainda esse profundo ‘deságio’ do gênero.”
“O machismo [no Congo] olha a mulher da cintura para baixo”, ela crava. “Pensam que a mulher só presta para fazer filho e ser dona de casa. Não pensam que é um ser humano que pode desenvolver em outras áreas, que pode integrar outros domínios da sociedade para contribuir na construção do país.”
Em sua vivência no Brasil, a advogada percebeu como é a valorização da mulher brasileira. “A mão de obra da mulher tem visibilidade, e há posicionamento da mulher, o que não vejo no Congo, onde a mulher é calada ainda, é humilhada, ela vivencia seus direitos serem pisados e ninguém a defende. E a Constituição [do Congo] não tem nada para a proteção e a promoção da mulher como vejo no Brasil”, completa Hortense. “Hoje a mulher brasileira carrega uma força no rosto. Já a fraqueza, a amargura, é o que se pode ler na cara de uma mulher congolesa.”
Mulher no Congo
“No Congo, o estupro da mulher está sendo usado como arma de guerra”, lamentou. “A mulher tem o sexo mutilado, ela é feita de escrava, vive o abuso sexual e ninguém está ali para protegê-la.”
Hortense frisa que, em sua terra natal, o machismo continua a manter sua força dentro da cultura. “A mulher tem que ser casada, ela não tem sua autonomia, e, para casar o homem ainda tem que dar o dote, ou seja, o homem está comprando um bem, como uma casa, um carro, ele tem a mulher como patrimônio. Ele não casa para fazer dela uma parceira, uma companhia, tem a mulher como se fosse um patrimônio.”
Hortense clama pelas suas conterrâneas. “Desejo que as mulheres no mundo, que são unidas, possam, por favor, olhar pelo Congo, a mulher no Congo está gritando por socorro e ninguém está ali para ouvir. São milhões de mortos [no Congo] e ninguém fala, a mídia e o mundo todo estão calados, há 25 anos a mulher está sendo estuprada nessa guerra toda, elas morrem todos os dias. A guerra da Ucrânia começou ontem, há outras guerras há mais tempo e ninguém fala nada.”
A guerra civil na República Democrática do Congo já deixou mais de 6 milhões de mortos, e milhares de mulheres vêm sendo submetidas a estupros. Os conflitos, grupos armados, milícias e facções vem de disputas pelo espaço e controle dos minerais congoleses que são contrabandeados para outros países.
Processo migratório
A professora Roberta Peres destaca que, como Hortense, as mulheres são também protagonistas de suas trajetórias migratórias e tem se distribuído em diferentes regiões do país, acompanhadas ou não. “Mulheres migrantes não são acompanhantes. São agentes de equidade no processo migratório.”
Roberta Peres ressalta que, no caso brasileiro, há ainda muitos desafios pela frente: “Acessar serviços de saúde, especialmente de saúde sexual e reprodutiva, ocupar postos de trabalho não precarizados e mal remunerados e perigosos, e que as crianças tenham acesso à educação, enfim, que consigam acessar o sistema de proteção social disponível”, reforça.
Para isso, os desafios são muitos: a questão da língua, da identidade, da cultura, do racismo e da violência de gênero. “É preciso compreender que as migrações internacionais no século 21 não vão cessar. Sua complexidade como processo social será cada vez maior e mais dinâmica, o que apresenta uma série de desafios para a gestão de políticas para migrantes.”
Por isso, o diálogo com gestores e com os movimentos sociais de migrantes é fundamental, defende Roberta. “E as mulheres têm se mostrado, em diferentes nacionalidades, agentes fundamentais neste diálogo e na luta por direitos, especialmente naquelas em situação de maior vulnerabilidade”, destaca.
A congolesa Hortense Mbuyi é atualmente presidente do Conselho Municipal de Imigrantes (CMI) da cidade de São Paulo, órgão consultivo e paritário que tem como objetivo participar da formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas voltadas à população imigrante da capital paulista.
Acesso
A professora pontua que ser mulher migrante no Brasil é lidar com o racismo, a xenofobia, as dificuldades no acesso ao sistema de proteção social. “É estar numa sociedade que vem selecionando, ao longo da história, que migração irá celebrar e reforçar o caráter de 'país receptor de migrantes'. Essa 'hospitalidade' é reservada apenas a alguns grupos de migrantes – que não são a maioria das pessoas em trânsito no mundo”, observou.
“Ser mulher migrante no Brasil – haitiana, venezuelana, síria, congolesa, coreana, boliviana, peruana, afegã, bengali, filipina, chinesa, nordestina, nortista – é lutar pela garantia de direitos básicos, incluindo aqueles relacionados à manutenção da própria cultura”, finaliza a professora.