Modernização expulsou samba do centro de São Paulo
A construção da Avenida Professor Luiz Ignácio de Anhaia Mello, na zona leste da capital paulista, o prolongamento da Avenida Pacaembu, na zona oeste e a construção da futura Estação Saracura/14 Bis, na região central, são alguns dos exemplos de como a modernização da cidade de São Paulo, por meio de obras de infraestrutura, apaga a memória material de territórios ocupados desde o período colonial pela população negra, e transfere para a periferia os locais de produção e manifestação cultural dos negros.
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A análise é de um grupo de pesquisadores que se reuniu no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), na capital paulista, na véspera do carnaval, para discutir o deslocamento forçado, para longe do centro da cidade, de um dos componentes mais marcantes dos territórios negros, o samba.
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Pinheiro, que também é carnavalesco de escolas de samba e professor da Escola da Cidade - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, estudou em seu mestrado o caso da escola de samba Príncipe Negro, fundada no bairro de Vila Prudente, na zona Leste, na década de 60, mas forçada a se mudar para bem longe dali, nos anos 80, a Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital.
“A história do príncipe, originalmente sediado na Vila Prudente, é um caso típico da expulsão da população negra para as periferias mais distantes, conforme a metrópole se expande. Naquele caso, a construção da Avenida Professor Luiz Inácio de Anhaia Mello foi determinante para que negros perdessem a moradia e não tivessem condições de permanecer na região”, afirma.
A escola de samba, que hoje está no Grupo de Acesso de Bairros 1, viu os membros de sua comunidade terem de sair da região após a valorização imobiliária trazida pelo processo de construção da nova avenida.
“[A] periferia deixa de ter um significado exclusivamente espacial e passa a definir o lugar de determinadas manifestações culturais centrais ou protagonistas e manifestações periféricas ou à margem. Nesse contexto, manifestações culturais da população negra são empurradas duplamente para as margens: tanto para os limites periféricos da cidade – acompanhando a expulsão da população negra para a periferia – quanto para fora dos eventos, circuitos e espaços culturais oficiais da cidade”, escreve em seu mestrado, defendido na USP.
O afastamento da população negra das áreas centrais de São Paulo não só restringe o alcance das manifestações culturais, como afeta diretamente a existência dos negros na maior cidade do país. O Mapa da Desigualdade, publicado no fim de 2022 pela Rede Nossa São Paulo e o Instituto Cidades Sustentáveis, mostra uma diferença de até 21 anos na expectativa de vida de quem mora na área nobre central do município e quem mora na periferia.
“À medida que você vai saindo do centro da cidade, deixa a região da Faria Lima, Moema, à medida que você se dirige para as bordas, para o leste, o oeste da cidade, a cada quilômetro que você anda, é um ano a menos de vida estatisticamente”, destaca Bruno Baronetti, doutor em história pela USP e pesquisador da cultura popular brasileira.
“A pessoa que está na cidade Tiradentes vai ter 20 anos a menos de vida do que uma pessoa que tá morando nos Jardins. É disso que a gente tá falando, de expulsão de pessoas, e essa expulsão produz uma cidade desigual, que gera pessoas que vão ter uma expectativa de vida 20 anos menor”, ressalta.
Largo da Banana
Conhecido como o berço do samba de São Paulo, o Largo da Banana, que ficava na região da Barra Funda, na zona oeste da capital, era ponto de encontro dos negros desde o fim do século 19. Em 1958, no entanto, com o prolongamento da Avenida Pacaembu até a Marginal Tietê, e a construção do Viaduto Pacaembu, o largo deixou de existir. Hoje, no local, resta apenas uma placa, colocada em 2021 nas proximidades do viaduto, para marcar que o local foi ponto inicial do samba paulistano, onde estivadores negros se reuniam em roda de samba e capoeira.
“O Largo da Banana é extinto em 1950 para, mais uma vez em nome do progresso, a construção do Viaduto Pacaembu e da Avenida Pacaembu. Se você for pesquisar nos acervos dos jornais, dos principais jornais da cidade, só há referências ao Largo da Banana nas páginas policiais. Não há nenhuma referência, para a grande imprensa, de que ali se praticava samba, que era um local de sociabilidade”, destaca Baronetti.
“Essas pessoas que fazem esse samba no Largo da Banana serão fundamentais para a construção das escolas de samba e dos cordões carnavalescos aqui em São Paulo, no começo do século 20”, acrescenta.
De acordo com a pesquisadora de tradições e cultura afro-brasileira, sambas e escolas de samba, doutora e mestre em ciência da religião, Cláudia Alexandre, o mesmo processo de apagamento de uma grande referência cultural negra – que ocorreu com o Largo da Banana – está se repetindo atualmente com a construção da Estação de Metrô Saracura/14 Bis, no centro de São Paulo.
No local, hoje bairro do Bixiga, existiu o Quilombo Saracura, e foi a sede da escola de samba Vai-vai. No início do século passado, a região era conhecida por nomes como Pequena África ou Quadrilátero Negro, devido à ocupação de pessoas descendentes do antigo quilombo.
Foi essa comunidade que fundou, em 1930, uma das mais importantes e tradicionais escolas de samba da cidade de São Paulo, a Vai-vai, com origem em um cordão carnavalesco que saía pelas ruas do bairro. Em 2021, a escola de samba deixou a sede na região, que foi demolida para dar lugar às obras da futura estação de metrô.
“A gente está dizendo que o projeto do metrô foi pensado para passar por cima de um patrimônio negro, de um território negro, desprezando as histórias e as memórias que estão ali. É apagar de vez a história do Quilombo Saracura, que a gente não acessa na própria história e memória oficial de São Paulo. O metrô foi projetado em cima de um patrimônio histórico da cidade que é a Escola de Samba Vai-vai, e a história que ela guardava e preservava do próprio quilombo do passado”, afirma Alexandre.
O Movimento Mobiliza Saracura Vai-vai entrou, na semana passada, com ação judicial pedindo a garantia de preservação do sítio arqueológico encontrado nas obras da Estação 14 Bis, na região central paulistana, que vai integrar a futura Linha 6 Laranja do Metrô. Segundo a articulação, que reúne cerca de 150 coletivos e organizações da sociedade civil, as obras, já iniciadas, colocam em risco possíveis vestígios do Quilombo Saracura, uma comunidade formada por pessoas que foram escravizadas onde está atualmente o bairro do Bixiga.
A concessionária responsável pela construção da estação, a Linha Uni, disse, em nota, que “tem dialogado com as partes interessadas para, após a identificação da origem dos achados, apoiar a comunidade em futuros projetos educativos e de preservação do patrimônio”. Segundo a empresa, o Movimento Saracura Vai-vai tem acompanhado os trabalhos com reuniões e visitas ao canteiro.
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