Morte de congolês no RJ completa um mês; o que o crime revela sobre Brasil?

Moïse Mugenyi Kabagambe, 24, foi amarrado e espancado até a morte no RJ após cobrar direitos trabalhistas. Entenda o que a morte do congolês revela sobre o Brasil

00:05 | Fev. 24, 2022

Por: Carolina Parente
Moise Mugenyi Kabagambe, jovem assassinado no Rio de Janeiro; crime completa um mês hoje, 24 (foto: Reprodução/Redes Sociais)

O brutal assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe completa um mês hoje, quinta-feira, 24 de fevereiro (24/02). O caso ocorreu no Rio de Janeiro e repercutiu em todo o Brasil, levantando discussões a respeito do racismo estrutural existente no País e da influência do passado escravocrata para formação do preconceito racial.

O jovem foi amarrado e espancado até a morte após cobrar direitos trabalhistas na Barraca Tropicália, na Barra de Tijuca e, infelizmente, não há ineditismo nesta história. Segundo a embaixada da República Democrática do Congo (RDC), de 2019 para cá, Moïse é o quinto congolês assassinado em terras brasileiras.

O Brasil abriga a maior população de afrodescendentes fora da África: no País, 78,5% dos 10% mais pobres são negros (pretos ou pardos), conforme dados de 2016 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE.) No Brasil, pessoas negras têm o dobro de chances de serem assassinadas em relação a brancos, sendo pretos, em 2021, conforme o Atlas da Violência, 77% das vítimas de homicídio.

Dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen) mostram que a população carcerária do país é composta por 60% de negros. Além disso, este é o país em que, conforme relatório final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens, divulgado em 2016, 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados anualmente, um a cada 23 minutos.

Caso Moïse: e uma breve história da escravidão

Do Congo e de Angola foram forçadamente trazidos ao Brasil parte relevante dos africanos que, entre os séculos 16 e 19, seriam escravizados no país. Esse período coincidiu com o início, ápice e queda do comércio transatlântico de escravos, marcando o maior êxodo forçado da história.

Este tráfego de escravos se dividiu em quatro momentos. O segundo momento, chamado de ‘Ciclo de Angola’, que ocorreu no século 17, trouxe às Américas povos do sudoeste da África, incluindo territórios que hoje correspondem a Angola e Congo.

Estima-se que às Américas desembarcaram dos navios negreiros cerca de 14 milhões de africanos, dentre os quais, ao longo de três séculos, 38,4% foram destinados ao Brasil, número que corresponde a mais de 5,3 milhões de pessoas. Há quem diga ainda que o Brasil recebeu 46% dos humanos embarcados nesses navios e que essa porcentagem equivaleria a 4,6 milhões de pessoas, mas os dados não são precisos. 

À época, o território brasileiro pertencia à Portugal, primeira nação europeia a engendrar a comercialização de negros à costa oeste do Atlântico. Ao passo que o tráfico negreiro acontecia, o elevado número de africanos escravizados no Novo Mundo foi crucial para que países da Europa Ocidental fundassem, nos séculos 17 e 18, poderosos impérios ultramarinos, com colônias espalhadas de norte a sul da América.

Quando aqui chegavam, além de enfrentar o ‘banzo’ (nome dado ao que hoje chama-se depressão), eram vendidos para trabalharem compulsoriamente em lavouras de café, tabaco, cacau, açúcar e algodão, nas minas de ouro e prata, na indústria de construção civil e de corte de madeira. Além disso, eram destinados ao trabalho doméstico.

“Essa migração forçada faria com que esses homens tivessem seus corpos e almas massacrados pela escravidão”, explica o professor de história Clodomir Freire, licenciado pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Por mais que o objetivo da escravidão fosse o lucro, tanto com o comércio quanto com a instalação de impérios colonialistas, o que ocorreu era justificado pela crença na suposta superioridade racial e cultural europeia.

Os negros escravizados eram majoritariamente membros de povos da África Ocidental e eram, muitas vezes, vendidos por outros africanos aos comerciantes de escravos da Europa. Outras vezes, eram capturados diretamente pelos europeus.

Caso Moïse: racismo à luz do materialismo histórico

O materialismo histórico é uma abordagem metodológica de estudo que busca investigar as causas de desenvolvimentos e transformações sociais por meio das quais os seres humanos produzem coletivamente as necessidades materiais de vida. Conforme essa tese, desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels no século 19, desde os primórdios da humanidade, o processo histórico se dá pelos confrontos entre as diferentes classes sociais e as relações de exploração entre elas.

"A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz o pelo modo de trocar os seus produtos", afirmou Friedrich Engels no capítulo 3 de Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico.

Então, a noção de raça que se conhece hoje é consequência do processo histórico, isto é, o racismo estrutural contra pretos no Brasil não existiria se a escravidão não tivesse ocorrido. Ou, por exemplo, a visão que se tem da negritude hoje não seria, provavelmente, baseada na concepção de uma suposta superioridade branca que justificaria o discurso escravocrata e a exploração cruel de humanos por vários séculos.

Racismo: o caso de Moïse e muitos outros imigrantes negros

No século 21, do mesmo Congo de onde vieram muitos escravizados, homens, mulheres e crianças fariam nova migração forçada, mas por motivos diferentes. Agora, muitos congoleses se veem frequentemente obrigados a escapar da difícil realidade em seu país, cuja situação é marcada por conflitos intertribais gerados pela dominação imperial neocolonialista (período que se inicia no século 19, após a queda do colonialismo mercantil).

O neocolonialismo desenhou à baioneta as fronteiras africanas como são atualmente, sem levar em consideração as diferenças culturais dos povos dominados. Com o interesse dos impérios europeus em decadência, devido às independências americanas, os interesses econômicos durante a colonização da África gerou, além de conflitos entre tribos, problemas como os que hoje se conhece nas Américas, como crime organizado, pobreza etc.

Segundo Clodomir Freire, refugiados congoleses migraram para o Brasil, fugindo da violência e esperançosos em construir uma vida que lhes dessem condições financeiras para trazer seus parentes que não puderam fugir dos conflitos locais. “Mas por que, ao tentar fugir da violência, jovens negros migraram para o Brasil? Provavelmente, não sabiam que nesse país ‘a carne mais barata do mercado é a carne negra’”, disse o professor de história citando Elza Soares, em música de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti.

Muitos congoleses que migraram ao Brasil, vivem no Rio de Janeiro, em comunidades violentas dominadas por traficantes e milícias. Eles costumam ter dificuldade para conseguir trabalho e sobrevivem de “bicos” ou subempregos. O professor afirma ainda que o assassinato “covarde” do jovem Moise Kabamgabe não basta a punição dos assassinos em virtude da repercussão que o caso ganhou na mídia.

“Não lhes contaram que, nesses trópicos, o racismo se associa a outra doença: o xenofobismo. É imperativo que se investigue estabelecimentos que, assim como a Barraca Tropicália, exploram a mão de obra de imigrantes, submetendo-os a formas de trabalho análogas à escravidão, bem como desenvolver lutas e criar medidas amplas que combatam o racismo e a xenofobia, pois é de muito mais do que o nosso lamento que eles precisam”, conta Clodomir.

Fontes: Nexo Jornal, BBC, Ipea, apublica.org,fpabramo.org