Caso Mariana Ferrer: acusado é absolvido em sentença inédita e advogado humilha jovem
Segundo a sentença, não havia como o empresário André de Camargo Aranha saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação
14:12 | Nov. 03, 2020
Uma sentença inédita de "estupro culposo" considerou inocente o empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a jovem catarinense Mariana Ferrer, de 23 anos, durante uma festa em 2018. Imagens obtidas pelo jornal The Intercept Brasil mostram o advogado de Aranha humilhando a jovem em uma audiência. O caso esteve novamente entre os assuntos mais comentados do Twitter nesta terça-feira, 3.
Segundo o promotor Thiago Carriço de Oliveira, responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto “intenção” de estuprar. Por isso, o juiz aceitou a argumentação de que ele cometeu “estupro culposo”, um “crime” não previsto por lei. Como ninguém pode ser condenado por um crime que não existe, Aranha foi absolvido.
O parecer jurídico, até então inédito, foi o fim de um processo marcado por troca de delegados e promotores, sumiço de imagens e mudança de versão do acusado. “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”, diz o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, responsável pela defesa do empresário enquanto mostra cópias de fotos sensuais produzidas pela jovem enquanto modelo profissional. Durante audiência, ele tenta relacionar as imagens ao argumento de que a relação foi consensual.
O advogado define as poses da jovem como “ginecológicas”, sem ser questionado sobre a ligação delas com o caso, e afirma que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana. O vídeo mostra ainda a jovem chorando enquanto reclama do interrogatório para o juiz. “Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito. Nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, diz.
As poucas interferências do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, ocorrem após as falas de Gastão. Em uma das situações, o juiz avisa Mariana que vai parar a gravação para que ela possa se recompor e tomar água e pede para o advogado manter um “bom nível”.
Até o crime, Mariana era virgem, o que foi constatado pelo exame pericial. Tanto a virgindade dela quanto a sua manifestação nas redes sociais para pressionar a Justiça foram usadas pelo advogado do empresário, que alega que ela manipulou os fatos.
“Tu vive disso? Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”, disse Cláudio Gastão durante a audiência de instrução e julgamento.
Mobilização nas redes sociais
Na segunda semana de setembro, a hashtag #justiçapormariferrer alcançou aos trend topics do Twitter após o empresário André de Camargo Aranha ser considerado inocente com o fim do julgamento. Apesar do processo correr em segredo de Justiça, a própria Mariana tornou seu caso público pelas redes sociais, em maio de 2019. Segundo ela, foi uma forma de pressionar a investigação que considerava parada devido à influência de Aranha.
Filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais, André é empresário de jogadores e é visto com frequência ao lado de figuras como o ex-jogador de futebol Ronaldo Nazário e Gabriel Jesus.
Na festa em que Mariana afirma ter sido estuprada, por exemplo, ele estava acompanhado de Roberto Marinho Neto, um dos herdeiros da Globo. O perfil de Mariana no Instagram, em que ela compartilhava detalhes do caso, foi removido pela rede social em agosto deste ano. Na ocasião, a página contava com mais de 850 mil seguidores.
Pelo Twitter, ela compartilhou um print em que a plataforma justifica que a conta foi removida “devido a um processo judicial”. Segundo Mariana, Aranha teria solicitado a remoção do conteúdo na Justiça.
Cláudio Gastão da Rosa Filho, que defende André no processo, é um dos advogados mais caros de Santa Catarina. Ele já representou Olavo de Carvalho em uma ação movida contra o historiador Marco Antonio Villa e chegou a defender Sara Winter quando ela foi presa pela Polícia Federal por manifestações contra o Supremo Tribunal Federal (STF).
Relembre o caso
O estupro, segundo Mariana, teria ocorrido na noite de 15 de dezembro de 2018, na festa de abertura do verão Music Sunset do beach club Café de la Musique, em Jurerê Internacional, em Florianópolis. Os ingressos para os eventos no local variavam entre R$ 100 e R$ 1,5 mil, dependendo da festa. O passaporte de acesso aos camarotes pode custar muito mais.
Mariana tinha 21 anos, trabalhava como promotora do evento, responsável por divulgar a festa nas redes sociais. Um vídeo que mostra ela grogue subindo uma escada com a ajuda de Aranha em direção a um camarim restrito da casa foi vazado na internet.
A Polícia só solicitou o material de forma oficial ao beach club meses depois do início das investigações, e a boate alegou que o dispositivo de armazenamento exclui as imagens após quatro dias. Por isso, apesar de a boate ter 37 câmeras de segurança, não foi possível recuperar imagens do resto da noite. Mesmo assim, o vídeo vazado na internet foi incluído no processo.
Em seu depoimento à Polícia, Mariana afirmou que teve um lapso de memória entre o momento em que uma amiga a puxou pelo braço e a levou para um dos camarotes do Café em que o empresário Aranha estava e a hora em que “desce uma escada escura”. Ela acredita ter sido dopada. A única bebida alcoólica anotada na comanda do bar em seu nome foi uma dose de gim.
Como ‘estupro de vulnerável’ virou ‘estupro culposo’
Em julho de 2019, o primeiro promotor a assumir o caso, Alexandre Piazza, denunciou André de Camargo Aranha por estupro de vulnerável, quando a vítima está sob efeito de álcool ou de algum entorpecente e não é capaz de demonstrar consentimento ou de se defender.
Ele também pediu a prisão preventiva de Aranha, aceita pela Justiça e depois derrubada em liminar na segunda instância pela defesa do empresário. Aranha cumpriu apenas medidas cautelares como a apreensão do passaporte.
Na denúncia obtida pelo The Intercept, Piazza considerou como prova o material genético colhido na roupa de Mariana e um copo no qual Aranha bebeu água durante interrogatório na delegacia.
O promotor também levou em conta “as mensagens desconexas encaminhadas pela vítima aos seus colegas” após descer as escadas do camarim onde o crime ocorreu, além dos depoimentos de Mariana, de sua mãe e do motorista de Uber que a levou até em casa.
Luciane Aparecida Borges, mãe de Mariana, contou ter sentido um cheiro forte de esperma quando a filha chegou em casa após a festa. Segundo ela, Mariana não costumava beber e nunca havia chegado em casa naquele estado.
O motorista citado pelo promotor na denúncia disse que a jovem passou a viagem chorando e falando com a mãe ao telefone. Para ele, ela parecia estar sob o efeito de drogas.
Também foram anexados ao processo áudios enviados por Mariana a pelo menos três amigos após descer as escadas do camarim. Em um deles, ela diz: “Amiga, pelo amor de Deus, me atende, eu tô indo sozinha, não aguento mais esse cara do meu lado, pelo amor de Deus”.
O promotor pediu ainda que fosse averiguada a conduta do primeiro delegado que atendeu a ocorrência e não solicitou as imagens das 37 câmeras de segurança do clube.
O entendimento do Ministério Público sobre o que aconteceu naquela noite, porém, mudou completamente na apresentação das alegações finais. O promotor Piazza deixou o caso para, segundo o MP, assumir outra promotoria, e quem pegou o processo foi Thiago Carriço de Oliveira. É nas alegações finais de Oliveira que aparece a tese do estupro “sem intenção”.
Para o novo promotor, não foi possível comprovar que Mariana não tinha capacidade para consentir com o ato sexual, desqualificando assim o crime de estupro de vulnerável descrito na denúncia pelo seu colega. Ele se baseia principalmente nos exames toxicológicos que não reconheceram nem álcool nem drogas no sangue de Mariana naquela noite e na aparente sobriedade indicada pela postura de Mariana ao sair do Café de la Musique e se deslocar até outro beach club em busca das amigas captada pelas câmeras da rua, da Polícia Militar.
Versões diferentes do acusado
No seu primeiro depoimento, em maio de 2019, ainda na delegacia, André de Camargo Aranha negou que tivesse tido contato com Mariana. No ano seguinte, quando prestou depoimento em juízo, mudou sua versão e afirmou ter feito apenas sexo oral nela.
Segundo o empresário, Mariana teria se aproximado dele no momento em que ele foi pagar a conta no bar e teria feito um carinho em seu cabelo. Em seguida, segundo Aranha, ela teria pedido para ir ao banheiro – momento em que subiram as escadas para usar o banheiro do camarim restrito. Ele teria então feito sexo oral e logo deixado o local.
Ao aceitar o pedido de absolvição, o juiz Rudson Marcos concordou com a tese do promotor e afirmou que é “melhor absolver 100 culpados do que condenar um inocente”. Como a sentença foi proferida na 1ª instância, ainda é possível que tanto Aranha quanto Mariana questionem a decisão em instâncias superiores.
Sentença pode abrir precedente
Para a promotora Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, a tese jurídica da condição “culposa” para casos de estupro abre precedente para dificultar a demonstração desses crimes.
Ela destaca que os tribunais costumam ter posicionamento firme pela consideração da palavra da vítima como prova de estupro e que os laudos periciais desses casos costumam ser negativos porque os vestígios desaparecem em poucas horas.
A promotora avalia que o rompimento do hímen e a presença de esperma, detectados pelo exame de corpo de delito, porém, são provas contundentes. “Denunciei centenas de processos de estupro, mas em nenhum dos meus casos me deparei com uma alegação como essa, é bastante diferente do que acontece nos processos de estupro”.
A delegada Bárbara Camargo Alves, da Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande, considera a tese de estupro culposo perigosa, uma vez que esses crimes costumam ocorrer entre quatro paredes e a única prova acaba sendo a palavra da vítima.
OAB e Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos pedem esclarecimentos
Ao The Intercept, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) da seccional de Santa Catarina, confirmou que teve acesso à cópia do processo judicial e informou que oficiou o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho para que preste esclarecimentos sobre sua conduta na audiência do caso.
A instituição não deu mais detalhes porque o processo ético disciplinar corre em sigilo e qualquer divulgação de informação pode anular o procedimento. Ao ser questionado sobre suas ações durante o interrogatório, o advogado informou que não iria comentar um processo sob segredo de Justiça, “principalmente em face de indagações descontextualizadas que revelam má fé e parcialidade”.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos também disse que remeteu ofícios às corregedorias do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e do Ministério Público de Santa Catarina, à Ordem dos Advogados do Brasil, Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público para que esses órgãos investigassem as condutas dos profissionais que estavam presentes na audiência.
O Conselho Nacional do MP, o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal de Justiça catarinense, porém, afirmam não ter recebido nenhuma notificação ou denúncia sobre o caso.
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