Cientistas avançam na pesquisa para tratamento de para e tetraplégicos com o uso de células-tronco
Pesquisas demonstraram recuperações significativas de movimentos em ratos e macacos rhesus com algum tipo de paralisia. Para isso, os cientistas criaram uma espécie de novo circuito neural com células-tronco
15:07 | Set. 29, 2020
Os neurônios são as células mais especializadas e complexas do corpo humano. É por isso que quando eles sofrem algum tipo de trauma, o processo para recuperá-los é difícil e deixa sequelas, até agora, vitalícias. Há séculos, cientistas pesquisam tratamentos eficazes que auxiliem paraplégicos e tetraplégicos a recuperar os movimentos e a sensibilidade. No entanto, foi a partir do final do século XX que os estudos mais avançaram e começaram a apresentar resultados promissores.
É o caso da pesquisa com células-tronco do biólogo Paul Lu e do neurologista Mark Tuszynski, que ao longo de 15 anos dedicaram-se a investigar mecanismos de regeneração da medula espinhal. A motivação da pesquisa para eles é ainda mais pessoal, já que Paul Lu sofreu um acidente de carro no Natal de 1996, deixando-o paraplégico.
A medula espinhal é um meio de comunicação do cérebro com o corpo humano, repleta de neurônios. Quando partes específicas dela são danificadas, o fio condutor (chamado de axônio) rompe e para de enviar os estímulos do cérebro para o resto do corpo. Assim, Paul Lu se questionou se era possível usar um relé neuronal para estimular o crescimento de axônios na área danificada e reconectar corpo e cérebro.
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Mas o que é um relé neuronal? O neurocientista Walace Gomes Leal, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e um dos autores de pesquisa publicada em julho de 2019 com Lu e Tuszynski, explica que é uma espécie de novo circuito elétrico.
Toda a comunicação entre os neurônios é realizada por meio de impulsos elétricos, que são interrompidos sem o fio condutor do axônio. Ou seja, é como se uma lâmpada parasse de funcionar porque um fio desconectou de outro. Mas, como os neurônios são células complexas, seria necessário muito esforço do organismo para a regeneração deles. É aí que as células-tronco entram.
Resultados promissores em ratos e macacos
Como explica o neurocirurgião pediátrico Eduardo Jucá, as células-tronco são as mais primitivas no corpo humano. Isso significa que elas têm potencial para se transformar em qualquer célula do organismo. A partir dessa lógica, a equipe de Lu e Tuszynski começou a testar o uso de células-tronco para estimular a regeneração de axônios e criar um novo circuito neural.
Em 2012, eles publicaram um artigo no periódico científico Cell demostrando uma intensa regeneração dos axônios e recuperação funcional de um rato paraplégico. Para isso, eles usaram células-tronco de fetos de ratos e as enxertaram no rato com paraplegia. É importante ressaltar que esse enxerto tinha várias intervenções para proteger as células-tronco e estimular o crescimento delas.
Segundo Walace, essa resposta “mudou para sempre a história da neurociência”. Afinal, além da regeneração das células, houve também o surgimento de novos neurônios - justamente o tal relé neuronal.
Em outra pesquisa, em 2018, eles fizeram o mesmo procedimento com um macaco rhesus semitetraplégico. No experimento, o macaco teve metade do corpo paralisado e em até dez dias após o trauma recebeu o transplante do enxerto de células-tronco humanas. “No macaco, eles encontraram que cerca de 300 mil novos axônios saíram do enxerto”, conta o neurocientista.
Os resultados começaram a surgir após nove meses de tratamento: o macaquinho já conseguia apertar uma laranja e movimentar os dedos. Para saber que o avanço foi influência direta das células-tronco, os cientistas compararam os resultados com o de um macaco controle, no qual as células do enxerto não sobreviveram. Ele ainda não conseguia se movimentar, diferente do macaco com células-tronco.
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Tratamento para traumas recentes
O neurocientista Walace reforça que a pesquisa está investigando tratamentos para traumas recentes. Não é como se, no momento que ele começasse a ser utilizado em humanos, o tratamento pudesse recuperar os movimentos e a sensibilidade de pessoas com para ou tetraplegia há muito tempo. Para isso, existem outras linhas de pesquisa.
O neurocirurgião pediátrico Eduardo Jucá explica que uma delas é o uso de eletrodos ultrapassando a medula lesada, com ajuda computacional. Nesse caso, a máquina implantada capta os estímulos do cérebro e movimenta os músculos diretamente.
A outra vertente é o uso de um exoesqueleto. “A pessoa veste uma espécie de armadura que é movimentada pelo cérebro. Daí, aquela armadura move os membros”, ilustra. Essas são maneiras de tentar recuperar a movimentação do corpo para pacientes com traumas mais antigos. Por outro lado, diferente da pesquisa com células-tronco, essas estratégias não conseguiriam recuperar a sensibilidade dos membros.
Tratamento é diferente de cura
O fato de a ciência estar avançando nos resultados não significa que a cura está na esquina. “São estudos promissores e que trazem muita esperança, mas ainda longe de serem utilizados de maneira rotineira em larga escala”, lembra Jucá. Nas projeções do neurocirurgião, é possível que daqui a dez anos resultados de tratamentos experimentais em alguns pacientes humanos comecem a ser vislumbrados.
De acordo com Walace, ainda é preciso investigar por mais tempo a maturidade das novas células. Apesar de muitas terem crescido do enxerto de células-tronco, elas ainda não estavam “adultas” o suficiente. “Esse novo circuito é como se fosse um bebê. No sistema nervoso, os circuitos dependem da atividade. Então, quando a pessoa receber o relé neuronal por transplante, precisará fazer fisioterapia. Reaprender a andar de novo. Tudo isso é importante”, diz.
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Além disso, espera-se que nos próximos cinco anos a equipe de Lu e Tuszynski deve testar em humanos. “Quanto maior é a medula espinhal, maiores são as dificuldades. A medula humana é maior que a do macaco. Isso causa um grande desafio para que esse relé neural preencha totalmente a cavidade e funcione como no macaco e no rato”, afirma Walace.
“Por enquanto, o que temos de mais eficaz [contra a para e tetraplegia] é a prevenção de acidentes, em especial na segurança no trânsito, e o papel fundamental dos profissionais de reabilitação”, complementa Jucá. O neurocirurgião também reforça a importância da sociedade aprender a integrar pessoas paraplégicas e tetraplégicas à vida cotidiana.
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Desafios para a pesquisa científica
A participação de Walace na equipe dos cientistas Paul Lu e Mark Tuszynski abriu portas para uma colaboração deles com a Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) para outra pesquisa. Sem poder detalhar como será o estudo, o neurocientista comemora a relevância da pesquisa e a importância da conexão internacional de cientistas.
“O mais interessante ainda é que isso vai ser realizado no Norte do Brasil, em Santarém do Pará. É uma região até distante de Belém e isso é fantástico. Normalmente, existe um certo preconceito de pesquisadores do Sudeste com pesquisadores da região Norte e Nordeste. Mas existem muitas pessoas competentes dessas universidades do Norte e Nordeste”, afirma.
Além disso, ele comenta que os estímulos governamentais são essenciais para garantir essa relação internacional. Sem a possibilidade dos mestrados e doutorados sanduíches e do investimento na Ciência, não há como o País avançar e participar de pesquisas que podem mudar o rumo da saúde humana. Infelizmente, comenta o pesquisador, esse estímulo governamental transformou-se um "ataque à Ciência".
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+ O desmonte da ciência brasileira
“Por exemplo, na Universidade Federal do Pará, o reitor que foi eleito com mais de 90% dos votos está ameaçado de não ser empossado. Isso é totalmente inaceitável. É um afronte à autonomia universitária”, lamenta. O cenário é similar em todo o Brasil, incluindo o Ceará.
Em agosto de 2019, o professor Cândido Albuquerque foi oficialmente empossado como reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC) pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Cândido era o último nome na lista tríplice da consulta pública entre alunos, servidores e corpo docente.