Há 20 anos, sequestro do ônibus 174 findava na morte de professora cearense no Rio de Janeiro
Há 20 anos, sequestro do ônibus 174 findava na morte de professora cearense no Rio de Janeiro Geísa Gonçalves tinha 20 anos e era professora de artesanato em um Centro Comunitário na favela da Rocinha; na época, família ganhou na Justiça causa em que ordenava Governo do Rio de Janeiro a pagar indenização, até agora não paga
13:41 | Jun. 12, 2020
No dia 12 de junho do ano 2000, o Brasil acompanhou pela televisão as cinco horas do sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro (RJ). À época, Sandro do Nascimento fez 11 pessoas de reféns com um revólver calibre 38, a partir das 14h20min daquela segunda-feira. Às 18h50min, o sequestrador saiu do ônibus usando uma refém como escudo, a cearense Geísa Firmo Gonçalves, de apenas 20 anos. Ela foi morta após ser alvo de quatro tiros: o primeiro de um policial do RJ e outros três de Sandro.
No dia seguinte, 13 de junho, se sabia ainda muito pouco sobre Geísa, que foi apresentada como empregada doméstica moradora da favela da Rocinha. Somente na quarta-feira, 14, O POVO pôde publicar que ela era, na verdade, professora de artesanato recém contratada para trabalhar em um Centro Comunitário na favela onde morava. Tinha se mudado de Fortaleza para o Rio há um ano com o marido Alexandre Magno, buscando independência e vida nova. Eles estavam felizes, contaram os familiares de Geísa ao jornal na época, não tinham planos de voltar.
A família da professora soube da tragédia assim como todos os brasileiros - pela televisão. Acompanhavam atordoados o sequestro, até que alguém identificou Geísa. Chegaram a gravar toda a cena para assistirem depois, por segurança, e receberam a confirmação por um telefone do marido Alexandre.
O pai da cearense, Gilson Gonçalves, soube da notícia pelo jornal impresso do dia 13. Não queria acreditar. Pensou em ir ao Rio de Janeiro para reconhecer o corpo, mas a família o avisou de que a irmã por parte de mãe de Geísa, Elisângela, já tinha assumido a missão. Na mesma terça-feira, ela retornava a Fortaleza com o corpo da irmã às 23h30min.
Família ainda estaria aguardando indenização
O primeiro tiro disparado em Geísa foi de um policial militar do Rio de Janeiro. O objetivo era atingir o sequestrador, mas errou e provocou a reação de Sandro do Nascimento. É como defendeu ao O POVO o então coronel da Polícia Militar (PM) do Ceará, Antônio Ivan, tio de Geísa. Ele explicou que a polícia sabia do risco de investir contra um sequestrador que mantinha a afilhada na mira de um revólver. “Eu não posso julgar esse policial. Estava sob violenta pressão, ansiava terminar aquilo tudo, mas ele estava sem comando", afirmou Antônio em matéria publicada no dia 14 de junho de 2020.
Baseados nisso, os familiares da professora decidiram processar o Governo do Rio de Janeiro e pedir uma indenização no valor de R$ 50 mil e pensão mensal vitalícia. Eles venceram a causa, mas depois de 15 anos não tinham recebido nenhum centavo. A reportagem do O POVO contatou o então advogado da família, Delano Cruz, para saber se o governo tinha finalmente enviado o pagamento. A resposta foi pesarosa: “Eu perdi totalmente o contato com o pai dela, que é quem ia receber a pensão. Não saberia dizer.”
De acordo com Delano, Gilson Gonçalves “simplesmente desapareceu”. O advogado tentou contatá-lo por telefone e outros meios de comunicação, mas não consegue afirmar nem se o pai continua morando em Fortaleza. Entretanto, comentou que a situação do RJ é “bem complicada” em termos de gestão. “Eu acho que essa demora ´[de pagamento] decorreu dessa falta de estrutura administrativa do Governo do Rio”, avalia.
Despreparo policial
No dia 14 de junho de 2000, a capa do O POVO estampava em letras garrafais a chamada “SOS Segurança”. Noticiava a intenção da família de processar o governo carioca, a demissão do comandante da PM, coronel Sérgio da Cruz, pelo então governador do Rio Anthony Garotinho e também o enterro de Geísa no cemitério do Bom Jardim. Na ocasião, cerca de três mil pessoas compareceram para prestar homenagens à professora de artesanato.
Entretanto, mais do que isso, o jornal chamava a atenção para o despreparo dos policiais durante operações. E não apenas no Rio de Janeiro, como também no Ceará. Na mesma edição, o coronel Antônio Ivan reforçava a esperança de que a tragédia servisse para uma reflexão sobre uma política de segurança pública no Brasil. “O despreparo é dos nossos governantes. Essas imagens chocaram a sociedade de todo o País”, afirmou.
Para o então delegado Francisco Alves de Paula, que era titular no 6º Distrito Policial do Ceará, se o sequestro do ônibus 174 fosse em Fortaleza, era "possível que o desfecho fosse bem parecido”. O delegado disse que a maioria dos crimes de alto risco no Estado eram resolvidos no improviso, sem recursos técnicos.
No entanto, o coronel Francisco das Chagas Vitor Araújo, na época comandante do Batalhão de Choque da PMCE, discordou e ainda defendeu que os policiais que atuaram no sequestro do Rio de Janeiro “estavam bem preparados”. "O problema estava sendo bem resolvido até quando o sequestrador desceu do ônibus. Foi a precipitação do policial, a vontade de fazer a coisa certa - que era aliviar o sofrimento da refém - que gerou a ação intempestiva de atirar.” Completou afirmando que o comando da operação não tinha intenção de matar o sequestrador.
Sandro do Nascimento
Sandro do Nascimento foi morto asfixiado dentro da viatura da PM, após quase ser linchado pela multidão que assistia ao avançar do sequestro do lado de fora do ônibus 174. Os policiais o levavam para um hospital, por ter sido baleado, mas o homem chegou morto à unidade de saúde.
Ele tinha 22 anos e era sobrevivente do massacre da Candelária - chacina que ocorreu na noite de 23 de julho de 1993, no Centro do Rio, e deixou oito jovens mortos. Ainda, aos oito anos, Sandro presenciou o assassinato de sua mãe na favela onde moravam, ficando em situação de rua.
Os policiais envolvidos na morte de Sandro alegarem morte acidental. Em depoimento, o então capitão Ricardo de Souza, do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM, afirmou que Nascimento estava “transtornado e precisou ser imobilizado”. Ele e os soldados Luiz Antônio Silva, Márcio de Araújo David, Paulo Roberto Alves e Flávio Dias foram declarados inocentes.
Dois anos depois, os diretores José Padilha e Felipe Lacerda lançaram o documentário "174", contando a história de Sandro. A produção foi premiado como melhor documentário nos festivais de Havana de 2003, Internacional de Cinema do Rio de Janeiro de 2002 e na Mostra Internacional de Cinema São Paulo de 2002. Ainda, venceu o Emmy Awards de 2005 na mesma categoria.
Já em 2008, o diretor Bruno Barreto produziu o filme ficção "Última Parada 174", também contando a história de Sandro. Foi escolhido em 2008 pelo Ministério da Cultura como representante do Brasil para competir a uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional em 2009, mas não chegou a ser indicado pela academia. Assista ao trailer: