Paulo Leminski, o poeta pop que o Brasil perdeu há 35 anos
“não discuto/ com o destino// o que pintar/ eu assino”
Mesmo quem não gosta de poesia já deve ter se deparado com esse poeminha simples, direto e pungente, sem pontuação, sem nenhuma letra maiúscula, sem palavra difícil de entender. Mas cheio de significados.
É + que streaming. É arte, cultura e história.
Foi esse tipo de construção que fez do curitibano Paulo Leminski (1944-1989) um poeta pop. Com estilo próprio e linguagem marcante, ele se apropriou de ditados populares e da sofisticação minimalista dos haicais japoneses, usou e abusou de gírias e palavrões, incorporou clichês publicitários à poesia e escreveu frases que poderiam muito bem estarem pichadas em muros — muitas, aliás, depois o foram.
Nesta sexta (7/6) se completam 35 anos que ele morreu, em decorrência de complicações de uma cirrose hepática. Seus problemas com o álcool foram uma constante — ele costumava dizer que tinha uma litroteca, pelo hábito de esconder garrafas de vodca detrás dos livros de sua biblioteca. Morreu cedo, aos 44 anos, mas deixou uma obra que influenciou e até hoje influencia poetas e escritores brasileiros contemporâneos.
Neto de poloneses que imigraram para o Brasil, Leminski nasceu há 80 anos. Aos 14, deixou a família no Paraná e decidiu morar por um ano no Mosteiro de São Bento, em São Paulo. Ali, em meio à vasta e erudita biblioteca mantida pelos tradicionais religiosos, aprendeu filosofia, literatura clássica e fundamentos de latim e teologia.
De volta a Curitiba, deixou de lado as ideias que lhe ocorreram de também ele se tornar um monge. Acabou se tornando escritor, poeta, músico, crítico literário, jornalista, publicitário, tradutor e professor. Chegou a cursar Direito e Letras — mas não concluiu. Em boa parte da sua trajetória, ganhou a vida como professor de história e de redação em cursinhos pré-vestibulares. A partir dos anos 1970, também trabalhou em agências de publicidade.
Sua estreia no mundo literário ocorreu em 1964, quando ele publicou cinco poemas da revista Invenção, capitaneada pelo concreto Décio Pignatari (1927-2012).
Seus livros mais importantes são ‘Polonaises’, de 1980, ‘Caprichos e Relaxos’, de 1983, ‘Distraídos Venceremos’, de 1987, e a prosa experimental ‘Catatau’, cuja primeira edição saiu em 1975.
Pop
Para especialistas, são muitas as características que fizeram de Leminski um poeta pop. Mas, principalmente, o fato de ele ter entendido a linguagem de seu tempo — e conseguido dialogar com isso.
“Leminski rompeu com códigos, paradigmas, conceitos, foi totalmente livre de escolas ou tendências. Por isso, atravessa diversas gerações e seduz os mais diversos gostos no que tange à poesia”, define à BBC News Brasil a poeta e tradutora Flora Figueiredo.
O poeta e tradutor André Capilé, professor de Literatura Brasileira na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), diz à BBC News Brasil que “Leminski sempre foi um poeta atento a seu próprio tempo” e soube travar “diálogos intensos com aspectos da cultura, respondendo também à contracultura”.
“Esse tipo de comunicação rápida e direta com os acontecimentos de seu período, considerando sua trajetória poética, o coloca quase como uma figura extemporânea, que o converte em poeta contemporâneo o tempo todo”, conclui.
“Não se faz nada de bom sem entusiasmo. E isso Paulo Leminski tinha de sobra, bem como doses fartas de excesso e vigor intelectual e criativo”, avalia à BBC News Brasil o jornalista, poeta e professor universitário Fabrício Marques, autor de, entre outros ‘Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski’.
Para ele, Leminski foi “um defensor da ligação da poesia e da vida num grau máximo”. “Alguém com um sentido de urgência”, diz. A também poeta Alice Ruiz, ex-companheira de Leminski, certa vez afirmou que ele tinha “uma pressa de viver como quem morre”.
“Com ele, não havia meio termo: era poeta 24 horas por dia, sem intervalos. A poesia era seu tesouro, uma das fontes de seu prazer. Por ela e para ela”, acrescenta Marques.
“Esse amálgama entre vida e obra, essa paixão irrestrita pela linguagem pode explicar um pouco a popularização desta poesia e o destaque à sua face mais pop”, analisa. “Além disso, sua persona e suas intervenções na arena pública, nos mais variados gêneros e espaços, eram muito sedutoras, criando um forte elo com os leitores.”
O sucesso segue importante para o mercado editorial. ‘Toda Poesia’, reunião de todos os livros de poemas de Leminski vendeu 170 mil exemplares em 2013 — uma cifra muito interessante para o nicho.
Curitibano como Leminski, o também professor universitário, poeta e tradutor Ivan Justen diz à BBC News Brasil que se tornar poeta pop “era a intenção” do autor de ‘Caprichos e Relaxos’. “Depois de ter feito o que ele chamava de ‘serviço militar’ com os poetas concretos, e de publicar o ‘Catatau’, um livro que ultrapassa o limite da inteligibilidade, Leminski queria ser lido e admirado pelas massas”, contextualiza.
O poeta publicamente se dizia admirador de autores populares como Chico Buarque, Caetano Veloso e Vinicius de Moraes (1913-1980).
Para Justen, o forte de Leminski foram “os poemas curtos, que nunca ultrapassavam uma página” e estes “caíram como um a luva no universo virtual”. Sim, muito antes da internet Leminski já escrevia textos que funcionam muito bem na era das redes sociais e da comunicação rápida e instantânea.
“A poesia de Leminski é popular também porque é de aparente fácil entendimento, para quem não se preocupa em buscar as referências e intertextualidades que estão lá. Portanto é do tipo que agrada público e crítica”, salienta.
Reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), o escritor e professor Miguel Sanches Neto ressalta à BBC News Brasil que a poesia de Leminski “se tornou extremamente popular pela conjunção de vários fatores”. “Primeiro, a relação dele com a MPB [ele compôs letras de música e foi próximo a artistas, entre os quais o grupo Novos Baianos — por isso o poeta brincava que havia se tornado “curitibaiano”], o que fez dele uma expressão pop contemporânea, nacional e internacionalizada dentro do tropicalismo”, lembra.
“Em paralelo a isso, Leminski trabalhou numa frequência dupla, de um lado uma poesia fácil, extremamente acessível, que a gente podia chamar de poesia de camiseta. De outro, uma experimental vinda dos concretistas”, analisa Sanches Neto. “Ele conseguiu ser uma espécie de ponto de confluência de toda a cultura brasileira dos anos 1970 e 1980 e isso deu para ele uma projeção que nenhum outro poeta de sua geração teve.”
Para o acadêmico, Leminski foi o “último grande sucesso de público da poesia brasileira”.
“Acho que uma das razões que faz com que a poesia de Leminski alcance públicos tão diversos é a qualidade rara de sua escrita”, define à BBC News Brasil o educador Francione Oliveira Carvalho, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e na Universidade de São Paulo (USP). “Quem gosta e valoriza poesia percebe a riqueza no uso da sonoridade das palavras e de sua linguagem poética; quem não tem tanta familiaridade com o gênero fica encantado com a comunicação direta e a inteligência no uso das palavras e das imagens criadas. Ele é um poeta que se comunica com sensibilidades muito diversas.”
Há ainda outros aspectos. Primeiro que, como bem lembra Sanches Neto, Leminski teve uma “vida de astro pop”. “Foi um cara que cometeu todos os excessos e morreu jovem”, diz Sanches Neto. Nesse sentido, passou a integrar um panteão que une astros internacionais do rock e poetas como o romântico Álvares de Azevedo (1831-1852) e o cineasta Glauber Rocha (1939-1981).
Outro ponto foi sua conexão com o mundo e a linguagem da publicidade. “Ele foi o primeiro poeta que usou descaradamente a publicidade para se autopromover. Ele era um poeta e uma poesia movidos pela promoção publicitária que ele mesmo criava”, afirma o reitor.
Entre os exemplos está a campanha de lançamento do livro ‘Catatau’, em que o poeta divulgou uma foto dele completamente nu. E também a adoção dos fartos bigodes como marca registrada, em referência à projeção internacional do então líder sindical polonês Lech Walesa — mais tarde, presidente da Polônia.
“Isso [esse uso] não é pejorativo. Mas ele foi o primeiro poeta que moveu a publicidade em prol de sua profissão. Isso não apequena sua produção mas agiganta o nome do escritor”, define Sanches Neto.
“A poesia de Leminski se tornou pop porque o mundo foi se tornando cada vez mais pop. Ele escreveu em versos curtos, à maneira de haicais. Ele veio de registros eruditos mas que foram cada vez mais pressionados pelo mundo da música pop, do rock, etc.”, contextualiza à BBC News Brasil o poeta, tradutor e crítico literário Régis Bonvicino.
Professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR), o poeta Marcelo Sandmann situa, em conversa com a BBC News Brasil, a aproximação popular de Leminski após a publicação de ‘Catatau’, “obra que era uma espécie de acerto de contas com as vanguardas literárias, com as quais flertou na década anterior”.
“A partir daí, Leminski aproxima-se cada vez mais da chamada poesia marginal e da canção popular, sem deixar de lado a influência que recebeu do concretismo. Trata-se de uma poesia coloquial, concisa, cheia de tiradas de humor e brincadeiras verbais, por vezes bastante digestiva”, explica.
“No início dos anos 1980, passa a colaborar com a grande imprensa brasileira e a publicar traduções, biografias e obras autorais pela Brasiliense, uma editora então de grande difusão no país. Usando de seus talentos como publicitário, soube também criar uma imagem pessoal de grande apelo, para além da própria literatura que produziu”, sintetiza Sandmann.
Influências
O impacto da produção de Leminski segue perceptível na cena literária brasileira contemporânea. “Para o bem e para o mal [ele] tornou-se uma referência para poetas que vieram depois”, diz Marques. “Para o bem, […] ele deu a liberdade de não definir um caminho, mas inventar inúmeras vias para o exercício criativo da palavra. Para o mal, o próprio poeta reconhecia que era dono de uma obra vigorosa, múltipla e ao mesmo tempo irregular. […] Nessa linha, seus poemas curtos passaram a impressão de que é 'fácil' fazer um poema, gerando uma legião de epígonos.”
Justen diz que a influência do curitibano “é notável” porque “ele é uma figura incontornável da poesia brasileira”. “Penso que ele influencia até mesmo no sentido de poetas contemporâneos procurarem evitar imitá-lo, enquanto outros assumem que buscando o que ele buscou encontrarão um belo caminho.”
Para Carvalho, contudo, embora Leminski seja “uma inspiração para os poetas contemporâneos”, vale ressaltar que “é muito difícil repetir o que ele fez, pois, a aparente e falsa simplicidade de seus poemas é revestida de muita pesquisa e cultura”.
A poeta Figueiredo assume ser, ela própria, “um exemplo dessa influência”. “Percebo em meus 37 anos de trajetória literária o quanto a concisão e a ousadia do poeta estão presentes em meus trabalhos. Há também um forte traço melódico, fruto de uma sonoridade inerente a Leminski”, observa.
“[Ele] influencia poetas contemporâneos porque seus poemas, suas fórmulas, fizeram sucesso, o que atrai poetas jovens. A poesia dele acaba por ser um facilitador”, argumenta Bonvicino.
Como escreveu Paulo Leminski, também sem nenhuma letra maiúscula e sem ponto final:
“tudo dito,/ nada feito, fito e deito”
- Alice Munro: escritora canadense e vencedora do Prêmio Nobel morre aos 92 anos
- Gibi, 85 anos: a história da revista de nome racista que se transformou em sinônimo de HQ no Brasil
- Como 'O Senhor dos Anéis' virou 'bíblia' da direita na Itália