Logo O POVO+
Anna Penido: transformação da educação exige novo olhar para o futuro
Paginas-Azuis

Anna Penido: transformação da educação exige novo olhar para o futuro

| Anna Penido | Diretora do Instituto Inspirare propõe que além do trabalho na aprendizagem de conteúdos, aspectos socioemocionais devem integrar dia-a-dia as salas de aulas
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
 (Foto: )
Foto:

Falar de possibilidades parece ser tarefa incansável para Anna Penido, diretora do Instituto Inspirare - organização com objetivo de propor inovações para avanço da educação no Brasil. Com formação em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), ela perseguiu na comunicação os caminhos para dar visibilidade às causas sociais e transformar realidades. Foi propondo oficinas de mídias para jovens e adolescentes que os olhos brilharam para o percurso da Educação. "Me encantei com a possibilidade de empoderar os jovens por meio da educação e da comunicação", diz.

Com especialização em Direitos Humanos pela Universidade de Columbia e em Gestão Social para o Desenvolvimento pela (Ufba) em 2011, participou do programa Advanced Leadership Initiative da Universidade de Harvard, Anna coordenou o escritório do Unicef para os Estados de São Paulo e Minas Gerais. A entrevista concedida ao O POVO ocorreu durante participação no 11º Congresso de Educação do Sistema Ari de Sá (SAS), em Fortaleza.

Para Ana, trazer os jovens para dentro do processo de construção do conhecimento e incluir de fato a tecnologia no dia-a-dia das salas de aula estão entre as prioridades de uma educação mais eficaz, justa e condizente com a aprendizagem de indivíduos do novo século.

O POVO: Na atual conjuntura,

é possível prever os rumos da Base Nacional Comum Curricular?

Anna Penido: A gente tem uma série de desafios novos como a questão da tecnologia, da automação, da criação de novas formas de trabalho, de novas profissões, a gente tem o desafio do meio ambiente e da questão da sustentabilidade. Temos o desafio da diversidade e das migrações, da urbanização, temos os desafios dos choques culturais, mudanças de comportamento que vão se retratando nas mudanças da sociedade, nas formas das pessoas se relacionarem, nas próprias legislações, a gente tem desafios profundos de desigualdade no mundo. E aí como a gente de fato prepara as novas gerações para não só acolherem todas essas mudanças mas também serem capazes de transformar essas mudanças em algo positivo. Para isso a gente precisa de uma outra escola, a escola que tá aí não dá conta nem desse aluno, que anda desengajado, desentusiasmado. A gente tem que repensar o currículo, do que realmente essas novas gerações precisam aprender hoje para estarem empoderadas e preparadas para lidar com tudo isso que está posto e com muito mais que virá pela frente. As mudanças curriculares vêm como uma resposta a essa crise na educação. No Brasil a gente, pela primeira vez, tem uma base nacional comum curricular, que não é o currículo propriamente dito porque cada escola, cada rede de educação é que constrói seu currículo, mas a base são as orientações curriculares que têm força legal. Ou seja, não é opcional, é algo que as redes de escolas precisam adotar e que estabelece ali o que essencial, não é o que é mínimo, porque a gente não quer que ninguém aprenda o mínimo. A gente quer que todo mundo aprenda o essencial. É uma questão de garantia de direitos. Não dá para numa escola X o aluno aprender o que é essencial e numa outra escola ele aprender o que professores ou diretores definiram que é essencial. Então a gente precisa desse parâmetro nacional. E na hora de repensar essa base houve uma oportunidade de se pensar o que seria uma base contemporânea, não só uma base que vai responder a desafios passados ou presentes, mas que também vai sinalizar para o futuro.

OP: Explica um pouco mais sobre a implementação das 10 competências gerais da BNCC

no cotidiano da sala de aula.

Anna Penido: As competências gerais são, digamos assim, o objetivo maior, o objetivo macro da educação no Brasil. São 10 competências que apontam o que de fato os alunos precisam aprender ao longo de toda a educação básica, da educação infantil até o ensino médio. Está dizendo ali que não é só absorver conteúdo, quando a gente fala de competência a gente está falando de conhecimento, habilidades, ou seja, como aprendo a usar esse conhecimento. Tem também atitudes e valores, porque como desenvolver nos alunos atitudes e valores necessários para que eles usem esse conhecimento e habilidade da melhor maneira possível. Melhor para eles, melhor para a sociedade. Então a gente sai da lógica conteudista para a lógica baseada no desenvolvimento de competências. (Questões de) comunicação e comunicação mediada por tecnologia, por redes sociais, cultura digital. A questão de projeto de vida, esse aluno ser capaz de planejar a vida dele, de desenvolver perseverança e métodos para alcançar seus objetivos; a parte toda de argumentação para lidar inclusive com opiniões sem cair na armadilha das fake news. E ao mesmo tempo essa questão de autoconhecimento, autocuidado, empatia , colaboração, cidadania, responsabilidade, que é o que as pessoas chamam de socioemocional. Ou seja, eu ser capaz de lidar com minhas emoções, com minhas relações e com meu papel no mundo também. Essas competências não podem ser apartadas do dia a dia, elas têm que ser trabalhadas cotidianamente na escola em articulação com os componentes curriculares, com a língua portuguesa, matemática, ciências da natureza, com artes...

OP: Pesquisando sobre você, vi que defende bastante a participação do estudante na construção desta aprendizagem. Me fala melhor

sobre isso na prática.

Anna Penido: Durante muito tempo o ensino foi muito focado no próprio professor. Ele como um protagonista que é detentor do conhecimento, que traz esse conhecimento para os alunos que não detém esse conhecimento. O mundo também era um pouco assim, uma elite pensando, um chefe brilhante e os outros seguindo. Hoje a sociedade pede outro tipo de postura, de posicionamento de relação. Pede que realmente todo mundo seja capaz de ter iniciativa, de resolver problema, de ter liderança, de saber se comunicar, de trabalhar em grupo. Isso inclusive no aspecto do mundo do trabalho, da cidadania, das relações pessoais. A gente precisa entender que essa nova lógica também precisa fazer parte do universo escolar. A gente está defendendo que de fato a gente coloque o foco da aprendizagem no aluno. É fundamental que os professores a própria estrutura escolar conheça quem são essas crianças, adolescentes e jovens de modo mais amplo. Conhecer sobre infância, sobre juventude, sobre adolescência hoje, como essa questão da neurociência, como eles pensam, como o cérebro se desenvolve, comportamentos, interesses, anseios, questões que eles carregam dentro de si. É uma geração muito ansiosa, que tem demonstrando essa ansiedade com crescimento de casos de depressão, de automutilação, de suicídio. Muita certeza faz com que as pessoas que estão em formação, que ainda não têm nada construído na vida, desenvolvam mesmo esses sentimentos de ansiedade. É preciso conhecer de forma mais ampla essas novas gerações e é preciso conhecer também cada um dos alunos porque ele são diversos socioeconomicamente, etnicamente, culturalmente e também na sua personalidade. Hoje a gente dá uma aula padronizada como se todo mundo aprendesse do mesmo jeito e a gente sabe que, com isso, muitos vão ficando para trás. E a gente fica tentando corrigir isso com ritalina, com castigo, com psicopedagogos... Tentando tapar os buracos como se a falha estivesse no aluno, mas a falha está no sistema. O aluno hoje consegue obter informação por meio de várias fontes com tecnologia, sem tecnologia, a informação está disponível, e ele consegue se envolver em diferentes atividades. É preciso que a gente também entenda como é que a gente pode aproveitar o próprio protagonismo desse aluno a seu favor, a favor da sua aprendizagem, como que esse aluno ao engajá-lo em atividade em que ele define qual o tema da pesquisa, em que em que ele lidera o projeto de construção na comunidade, em que ele toma a decisão sobre o que vai acontecer na escola, em que é cúmplice do professor na definição de práticas pedagógicas que fazem mais sentido para ele, como é que a gente aproveita a potência do aluno para repensar a escola.

OP: O Ceará é um exemplo de estado que conseguiu fazer bons investimentos na educação pública, principalmente no que diz respeito às séries iniciais. No entanto, o estado segue uma tendência de todo o Brasil de baixos índices nas avaliações nacionais no Ensino Médio. O que nos falta para garantir a aprendizagem desses estudantes do ensino médio e dos anos finais?

Anna Penido: Bom, primeira coisa, a gente vai pensar nos anos finais, os anos finais é uma etapa super negligenciada da educação básica, eu fico brincando que os anos finais são o filho do meio de pais separados. Então tem o caçula, (que é ) a educação infantil e os anos iniciais tocados pelo município. Tem o ensino médio tocado pelo estado, e você tem os anos finais que é bola dividida. Então não é prioridade para ninguém, e lidar com adolescente é super desafiador. Adolescência é uma etapa muito específica do desenvolvimento humano, muitos hormônios, muitas mudanças, a descoberta do mundo, das relações sociais. Você começa a realmente ser um cidadão do mundo, sair de casa, da proteção da vida doméstica e começa a ter muitos interesses, como tecnologia, relações afetivas, descobrir seu corpo. Uma escola que lida com essa faixa etária precisa ser toda pensada para essa faixa etária. Ela tem que ter uma série de peculiaridades que são totalmente negligenciadas, pelas escolas e pelas redes de ensino. A gente acaba começando a perder os estudantes e o interesse deles, o engajamento, começa a reprovação porque eles estão com a cabeça em outra lugar. A escola não consegue entusiasmá-los, e a gente vai com uma defasagem para o ensino médio. O ensino médio também a mesma coisa, a gente também está tendo dificuldade de fazer um ensino médio que faça sentido para os jovens. O mundo está lá fora pedido outras coisa. (Há dificuldade) nas próprias relações de professores muito hierárquicos, que subestimam muito a capacidade do jovem, que têm preconceitos contra o próprio jovem. Enfim, a gente tem que quebrar com tudo isso e ver potência nesses meninos. É quando a gente vê potência nesses meninos que eles também descobrem a potência dentro de si e aí deslancham.

OP: O projeto Escola sem Partido, principal bandeira de campanha do novo governo, pode ter mais adesão nos próximos anos. Pensando na realidade das salas de aula brasileiras, como você observa a proposta?

Anna Penido: Eu circulo muito pelo Brasil afora, escolas, redes de ensino. Essa questão desse fantasma da doutrinação, eu não consigo ver isso nessa escala que está sendo apontada. Eu vejo muito mais a dificuldade do professor porque teve uma formação deficitária de não só entender o seu próprio componente curricular, como entender essa questão do desenvolvimento integral, das competências gerais, como entender como é que ele pode desenvolver práticas pedagógica, planejar atividades pedagógicas que realmente deem conta do desenvolvimento desses alunos, que realmente engaje seus alunos e os preparem para o século XXI. Isso eu vejo. Essa dificuldade, eu acho que o problema que a gente tem quando os meninos saem da escola sem conseguir dominar conhecimento, habilidades e atitudes como a gente gostaria não é por uma questão de doutrinação. Eu não vejo eles dominando pensamentos marxistas, ou dominando práticas político partidárias de esquerda. Eu vejo eles despreparados para a vida mesmo. Então o problema do professor é que a gente precisa ajudá-lo a desenvolver sua capacidade docente. Se tem um professor ou outro que faz um mau uso da sua função, do seu papel, as escolas têm sistemas e mecanismos de regulação para dar conta disso. Tem o conselho de escola, tem conselho de classe, tem os procedimentos administrativos para casos em que haja abuso de poder. A nossa preocupação teria de ser com qualificar o professor enquanto docente e não desqualificá-lo . E hoje o que a gente está fazendo é desqualificar o professor. Quem é que vai querer se submeter a uma profissão que além de não ser bem formado você ainda é socialmente desqualificado? Sem falar na questão salarial, mas acho que desqualificação do status do professor é pior. A gente precisa de bons professores. O País não vai seguir adiante sem a gente confiar, apoiar e valorizar esse professor.

OP: Há muitas críticas sobre a integração da tecnologia em sala de aula pela dificuldade de usabilidade mesmo dessa tecnologia. Um professor tem uma lousa digital em sala de aula e muitas vezes aplica métodos antigos nesta plataforma. Como aliar inovação a inovações nos métodos?

Anna Penido: Há essa da digitalização da escola tradicional. Você coloca livro digital, lousa digital, videoaula e acha que está usando tecnologia, mas a tecnologia está a serviço de um modelo antigo porque tudo está no modelo antigo mas no digital. A tecnologia em todos os lugares que ela entra, ela provoca disrupção. A gente tinha um modo de usar transporte - táxi, transporte público - hoje a gente tem outro modo por conta da tecnologia. Mudou o modo de operar questões financeiras bancárias. São mudanças profundas, não são mudanças de maquiagem. Não é uma ferramentinha para ajudar a gente a fazer a mesma coisa. Não é que tenho uma tabuleta digital para chamar um táxi na rua. Então a mesma coisa se passa na escola, a gente tem que entender como a tecnologia pode solucionar problemas novos proporcionando outras maneiras de as coisas acontecerem dentro da escola. Quando você tem a possibilidade de tecnologia personalizar mais a educação... Porque com tecnologia tem como acompanhar mais o que o aluno aprendeu ou não aprendeu em tempo real, sem esperar o teste ou a prova no final do bimestre. Tem como fazer mais trocas, criar comunidades de aprendizagem, tem a oportunidade de fazer com que o aluno tenha acesso a informações que ele não teria porque pode virtualmente visitar um museu no outro país, ter acesso a conhecimentos dos mais diversos que não estão necessariamente no livro didático que ele tem em mãos. Se for usada dessa maneira, aí sim ela vai ser uma contribuição que vai fazer diferença na educação dos alunos. A coisa muito importante é que além disso, se a gente não traz a tecnologia para a escola, nós estamos privando esses alunos de terem acesso a algo que vai ser essencial, fundamental para eles estarem preparados para a vida. Sem tecnologia na escola o abismo social, o abismo de oportunidades se amplia significativamente. Então a escola precisa oferecer isso como algo que é tão relevante como o português e a matemática para os alunos.

OP: E como fazer isso diante das dificuldades estruturais do ensino público?

Anna Penido: Tem que priorizar. Tudo é uma questão de prioridade, muitas vezes os recursos vão para fazer fiscalização de professores, se estão doutrinando ou não. A gente pode pegar esse recurso, essa atenção, essa intenção, e de fato colocar onde a gente vai fazer mais diferença para vida dos nosso alunos. É fundamental inclusive o esforço da sociedade. Isso não pode vir só do orçamento da Educação, tem que vir do orçamento das Telecomunicações, da Fazenda, da Indústria, Comércio. Tudo isso - formar, dar acesso, preparar os alunos para lidar com tecnologia - vai ter impacto em todas essas esferas da sociedade.

 

Educação

BNCC - A Base Nacional Comum Curricular é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das
etapas e modalidades da Educação Básica.


Carreira - No jornalismo, Anna trabalhou como repórter para o jornal Correio da Bahia e para as revistas Veja Bahia e Vogue. Integrou as equipes da Fundação Odebrecht e do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Fundou e dirigiu a Cipó - Comunicação Interativa.


Congresso - Além de Anna Penido, o 11º Congresso de Educação SAS contou ainda com a presença de Claudia Costin, coordenadora do Centro de Inovação e Políticas Educacionais da FGV; e Miguel Thompson, diretor do Instituto Singularidades.

O que você achou desse conteúdo?