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O que contribui para as enchentes e compromete os recursos hídricos em Fortaleza
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O que contribui para as enchentes e compromete os recursos hídricos em Fortaleza

As veias abertas de Fortaleza. Especulação imobiliária, mau uso do solo, excesso de canalizações e acúmulo de lixo contribuem para enchentes e comprometem os recursos hídricos dos rios que cruzam Fortaleza
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Avenida Heráclito Graça (Foto: FABIO LIMA/O POVO)
Foto: FABIO LIMA/O POVO Avenida Heráclito Graça

Uma moradora do Lagamar abordou nossa equipe de reportagem e perguntou se estávamos ali por conta dos alagamentos. Pedindo para não ser identificada, contou que sua casa havia desabado há exatamente um ano, em abril de 2018. As rachaduras nas paredes já eram profundas, a água invadia os cômodos a cada inverno, "mas a gente nunca acha que vai acontecer com a gente". Quando a estrutura começou a ruir, teve tempo para salvar alguns móveis. Hoje mora de favor no primeiro andar de uma casa que também está alagada, às margens do canal por onde corre o rio Cocó.

Desde a Serra de Aratanha, em Pacatuba, o Rio Cocó avança por 50 quilômetros até desaguar entre as praias do Caça e Pesca e Sabiaguaba, invadindo o Atlântico. Passa por Maracanaú e Itaitinga antes de chegar a Fortaleza, onde é contingenciado pelas barragens inauguradas em junho de 2017, resultado de projeto do Governo Estadual que investiu R$ 105 milhões - também destinados às desapropriações do entorno.

Nos meses de chuva forte, dezenas de moradores do Conjunto Palmeiras e bairros vizinhos, geralmente jovens entre 15 e 25 anos, marcam encontros na barragem. Os mais corajosos se exibem em saltos arriscados, arrancam gritos dos outros. Tomam cachaça, comem biscoito, fumam maconha. O rio é para o lazer. Na outra margem, policiais militares fazem a ronda e assistem aos pulos. Previnem os assaltos que vez por outra acontecem na região.

No último 24 de fevereiro, as águas que abastecem e divertem invadiram as ruas do bairro. As chuvas pesadas da noite anterior já haviam cessado, mas os dois afluentes do Cocó que cruzam o Conjunto Palmeiras transbordaram. "A gente estava na rua, organizando um abaixo-assinado pela limpeza desses afluentes, e de repente a água começou a subir", relembra Pool, articulador social e um dos coordenadores do movimento Círculos Populares. "As pessoas começaram a aparecer chorando, pedindo ajuda pra levantar os móveis. Teve casa que alagou até a altura das janelas", completa.

Da barragem no Conjunto Palmeiras ao encontro com o mar, há uma constante que perpassa quase todos os bairros que são cortados pelo Cocó: as moradias irregulares. São casas e barracos erguidos informalmente à beira do rio, geralmente com sistema precário de esgotos que desemboca diretamente no leito. Quando o volume de águas sobe, essas casas são as primeiras atingidas. O Rio Maranguapinho, que cruza bairros como Bom Jardim e Genibaú, apresenta o mesmo quadro. Não à toa, estão entre as regiões mais afetadas por alagamentos em períodos chuvosos.

"A criação dessas áreas de risco tem a ver com a completa mercantilização do solo urbano. A cidade é regida pela especulação imobiliária, Fortaleza tem um dos metros quadrados mais caros do Nordeste. O que resta, para as pessoas que não têm condições, são essas áreas", explica o geógrafo Jeovah Meireles, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Segundo o especialista, os alagamentos registrados na Capital "são derivados de conexões que estão sempre voltadas a essa postura de gestão urbana de não consolidar trechos livres da especulação".

Pool resgata a história do Conjunto Palmeiras para reforçar o argumento de Jeovah. "Esses bairros são, historicamente, de trabalhadores precarizados. Vieram das primeiras remoções, na década de 1960, quando tiraram essas pessoas do litoral e jogaram pra aquelas regiões. As pessoas precisaram se organizar pra ter água encanada, iluminação pública, tudo na base da luta. São comunidades que têm uma relação muito forte com o rio e a floresta", explica.

Jeovah acompanhou nossa equipe durante visita ao Conjunto Palmeiras. Enquanto percorríamos o bairro, apontava ruas que provavelmente foram construídas sobre afluentes do rio - são aqueles trechos localizados no ponto de encontro entre aclives e declives. "Isso tudo era área úmida, provavelmente uma lagoa que agora está totalmente ocupada. Quase não se vê vegetação, é só calçada e calçada", analisa.

A água das precipitações, após atingir o solo, corre de três maneiras - por evaporação e evapotranspiração, com a ação do sol e das árvores; por infiltração, absorvida pelo solo; e superficialmente, escorrendo pelo solo e direção aos rios e canais. Nos centros urbanos, com a capacidade de infiltração quase totalmente comprometida por asfaltos impermeáveis, resta a evaporação, mais lenta que o volume coletado, e o escoamento superficial, seriamente comprometido pelo sistema de drenagem insuficiente.

Pool reforça a análise de Jeovah em relação ao Conjunto Palmeiras: "A maioria dos afluentes está canalizada. Outros estão cheios de mato e lixo". Segundo ele, não há nenhum projeto de sensibilização e educação ambiental nas comunidades. Além disso, há uma espécie de "validação" das moradias irregulares - "são casas que estão em área de risco, mas que precisam pagar contas de água e energia", completa.

Embora pareça circunscrito às áreas da periferia, os problemas de esgoto e saneamento básico estão distribuídos por grande parte da Capital e de sua região metropolitana. De acordo com os últimos dados do Ranking de Saneamento Básico, relatório elaborado anualmente pelo Instituto Trata Brasil, apenas 49,68% das residências de Fortaleza têm atendimento total de esgoto. "Em outras cidades do Interior, esse índice pode cair para 5%. Todo o restante cai direto nas bacias dos rios que chegam a Fortaleza", explica Jeovah.

Além dos baixos índices de saneamento, grandes volumes de fossas estouradas são responsáveis por lançar nos rios substâncias estranhas aos sistemas hídricos, como potássio, nitrato, alumínio e fósforo. As plantas que assimilam esses materiais acabam proliferando descontroladamente, gerando problemas de dominância no ecossistema. Os peixes morrem sem oxigênio, os aguapés aparecem, assim como o capinzal nas margens. "Isso tudo forma um agregado de matéria orgânica que é bastante úmido, mas totalmente contaminado. A consequência é a extinção da lagoa", explica Jeovah.

Esse cenário pode ser visto com clareza no trecho do Rio Cocó que corta o Lagamar. Entupido de detritos, esgotos, lixo e material orgânico, corre a uma velocidade quase imperceptível. "A água tá parada, tu tá vendo? Tá tudo entupido", aponta Vicente Pereira, que vende peixes em casa e está preocupado com as rachaduras na parede. Seu vizinho, João Santos, precisou colocar a geladeira em cima de tijolos - os esgotos da casa transbordaram e inundaram todos os ambientes.

Nas ruas do bairro, a água se aproxima do joelho. Em uma das esquinas, moradores se juntaram para quebrar o asfalto e aumentar a vazão das bocas de lobo. Em outra travessa, um senhor morreu de leptospirose. Reclamam da sujeira acumulada no rio, mas assumem sua parcela de culpa no problema. Quando finalmente consegue cruzar as passarelas do Lagamar e volta a correr com um mínimo de velocidade, o Cocó já está praticamente morto. Chega ao mar sem nada da exuberância da barragem onde saltavam os moradores.

CARTOGRAFIA DOS ALAGAMENTOS

Heráclito Graça

Berço do Rio Pajeú, que corre de forma quase totalmente subterrânea até desembocar no Poço da Draga. Sua bacia foi totalmente ocupada por construções, o que compromete as áreas de inundação natural e aumenta a impermeabilidade do solo.

Conjunto Palmeiras

A barragem do Rio Cocó não conseguiu evitar o alagamento das ruas do bairro. Inúmeras moradias irregulares são erguidas às margens do rio.

Lagamar

O excesso de lixo, esgotos e material orgânico impedeM o fluxo adequado das águas. A falta de sistemas adequados de drenagem colabora com o alagamento das ruas.

Bom Jardim

Cortado pelo Rio Maranguapinho. Esgotos e lixo também prejudicam o fluxo, assim como moradias irregulares em suas margens.

São Gerardo

O riacho que corre por trás do North Shopping está quase totalmente estrangulado e canalizado. Na região, há lagoas soterradas e com leito drasticamente reduzido.

Aeroporto

Entre o supermercado Macro e o Aeroporto Internacional Pinto Martins, há diversas drenagens estranguladas. Na região da Lagoa da Rosinha, há canais e diversas áreas úmidas soterradas.

Lagoa da Parangaba

O leito da lagoa foi drasticamente reduzido, comprometendo as planícies de inundação.

TRAJETO MOLHADO

Na manhã seguinte a uma noite de grandes precipitações no início de abril, O POVO visitou pontos críticos e de alagamento frequente em Fortaleza. Aceitou nosso convite para integrar a equipe, gentilmente, o professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) Jeovah Meireles. Graduado em Geologia pela UFC, Jeovah é mestre em geociências pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), onde realizou mapeamento geomorfológico do quaternário costeiro de Icapuí, e doutor em Geografia Física pela Universidad de Barcelona, na Espanha. Além de nos acompanhar em nosso trajeto, Jeovah colaborou fornecendo imagens de satélite que ajudaram a compreender a dimensão das áreas úmidas suprimidas - fundamentais para a elaboração deste infográfico.

LEIA AMANHÃ

Na edição de amanhã, a segunda parte da reportagem acompanha o fluxo submerso do Riacho Pajeú, ecossistema fundamental para a história de Fortaleza, e traz especialistas que discutem o problema da drenagem nas grandes cidades. Órgãos municipais e estaduais comentam situação dos recursos hídricos e destrincham projetos de recuperação das áreas.

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