O reviver do vestir luto e luta: a lembrança do ‘kimono negro’ nas medalhas de Beatriz Souza
Beatriz ganhou a medalha de ouro +78kg feminino e bronze por equipes para o BrasilNo judô, o tecido grosso e resistente do Kimono funciona como uma armadura que simboliza anos de treino árduo, disciplina e dedicação. Cada dobra e cada amarração do obi – o cinto que segura tudo no lugar – carrega consigo uma história de batalhas nos tatames.
Para a primeira judoca brasileira a estrear com ouro em uma olimpíada – que também levou o bronze por equipes –, Beatriz Souza, que saiu vencedora na tarde da última sexta-feira, 2, em Paris, ele foi branco e também azul. Contudo, revestido pelas suas motivações e inspirações, ele se mostrou simbolicamente preto, como o de Soraia André, nas seletivas para Atalanta, em 1993.
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Pioneira, Soraia foi decacampeã nacional e a primeira mulher a conquistar uma medalha de ouro em Jogos Pan-Americanos. Assim como Bia, partiu da periferia e utilizou o esporte como ferramenta de ascensão social. Nas eliminatórias para os jogos daquele ano, foi impedida de competir por conta da idade e decidiu ir à arquibancada com a vestimenta alternativa, que representava luto e resistência.
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Após vencer o confronto que lhe qualificou a receber a medalha de ouro, Bia Souza não cogitou conter as lágrimas e dedicou sua luta ao próprio luto. “Foi por ela”, disse a judoca para a sua família em chamada de vídeo. “Ela” era a sua avó, que morreu dois meses antes dos jogos.
Naquele momento, a campeã, que se mostrou gigante mesmo quando enfrentou uma adversária considerada “a melhor do mundo”, na França – onde a favorita nasceu –, relembrou a pequena Bia, que partiu de Itaperi aos 13 anos, lutando, de forma literal, pelo sonho que realizou e os da própria família.
“Eu consegui. Deu certo, mãe. Pai, eu consegui. Foi pela vó. Eu amo vocês”, falou.
O lembrete constante de suas raízes já eram lágrimas. O sentimento, todavia, já não era tão claro quanto o visível. A alegria de uma medalha de ouro no pescoço era acompanhada pela saudade por conta da distância dos pais, com quem falava em chamada de vídeo, e pelo vazio de não ter a avó naquele momento, após tê-la ao lado durante toda a luta fora dos tatames.
Assim, o imaginário kimono preto lhe vestiu novamente quando saiu da área próxima ao tatame. Ali, o luto passou a faixa ao que seria um símbolo. Se, na época de Soraia, o kimono, lá não hipotético, representava o protagonismo político de uma mulher preta e atleta – ainda que fosse, na situação, uma crítica a uma regra etarista que lhe tiraria das olimpíadas –, ele voltou com os mesmos valores, em forma de motivação.
“Gente, mulherada, pretos e pretas do mundo todo: é possível, acreditem. Acreditem. Às vezes, a gente acha que pode tá pagando muito caro, mas vale cada centavo quando a gente conquista o que a gente quer. Acreditem. Acreditem”, citou Bia, ao trocar as lágrimas por sorrisos de conquista e perspectiva, que transbordavam aos seus iguais de alma, gênero e cor de pele.
Soraia André, que se aproxima de Bia na analogia, em sua trajetória, passou por conquistas e frustrações, que chegaram a lhe fazer tentar tirar a própria vida. O mesmo esporte voltou e lhe salvou. Ainda hoje, a ex-atleta segue no âmbito esportivo, mas em outra modalidade, sendo psicóloga de vôlei.
A jornada ao ouro
A trajetória de Bia até o ouro – e, posteriormente, o bronze – não começou na capital francesa, mas sim em Itariri, quando treinava judô sob a supervisão rigorosa, mas carinhosa, de seu pai, Poseidon. Ele próprio, um ex-atleta de judô, foi quem plantou a semente do esporte em sua filha. E ali, entre quedas, sorrisos e lágrimas, começou a forjar-se a campeã que o mundo veria.
Anos depois, a esperada estreia de Bia nos tatames parisienses foi mais rápida do que a brasileira desenhava em suas projeções. Em apenas 40 segundos, ela aplicou um ippon em Izayana Marenco, da Nicarágua, avançando com confiança para as quartas de final.
A cada combate, Bia se mostrava mais implacável, mas o nível subia. Superou a sul-coreana Hayun Kim no golden score, mostrando resiliência nos minutos decisivos.
Nas semifinais, a brasileira enfrentou e venceu Romane Dicko, a francesa líder do ranking mundial, que lutava diante de sua torcida, garantindo seu lugar na final em um triunfo heróico.
Chegar à final olímpica já era um feito monumental. Com a serenidade de uma veterana, mesmo em sua primeira aparição em Olimpíadas, ela realizou o sonho que acalentava desde menina.
No cenário majestoso da Arena Campo de Marte, Bia, enfrentou a israelense Raz Hershko na derradeira final. Com o peso de uma nação em seus ombros, ela não decepcionou. Um golpe perfeito, um waza-ari executado com a precisão, garantiu a ela a medalha de ouro – a primeira do Brasil nestes Jogos Olímpicos.
O ouro de Bia foi a sétima medalha do Brasil nesta edição dos jogos, e a terceira do judô. Além dela, Willian Lima trouxe a prata na categoria até 66 kg masculino e Larissa Pimenta conquistou o bronze nos 52 kg feminino.
No último dia de disputas do judô, no sábado, 3, o Brasil conquistou mais uma medalha, a quarta da modalidade na Olimpíada de Paris. O bronze veio na disputa por equipes, com uma vitória emocionante sobre a seleção da Itália por 4 a 3.
Beatriz Souza ganhou a medalha ao lado de Larissa Pimenta, Rafaela Silva, Ketleyn Quadros, Daniel Cargnin, Willian Lima, Rafael Macedo, Guilherme Schmidt, Leonardo Gonçalves e Rafael Silva.
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