Mailson Furtado: o Clássico-Rei e o encontro do Brasil mais perto de mim
Escritor e produtor cultural, Mailson Furtado usa o duelo da Copa do Brasil para ilustrar o quanto tem mudado a experiência de torcer para um time cearense no interior do Estado. Em texto, ele investiga as razões dessa "revolução"Última quinta-feira, por volta das 23h40min, alguns foguetes troavam na pequena Varjota. Nas suas casas, por conta da pandemia, muitos festejavam, outros com raiva tentavam dormir, e há os que não sabiam o que se passava, porém não ficavam inertes a toda mobilização sonora na cidade. Não venho falar dos foguetes e de sua inconveniência, mas do motivo deles: o Clássico-Rei, Ceará x Fortaleza que valia uma vaga nas Oitavas de Final da Copa do Brasil. Fortaleza saiu vencedor (vivaaaa Leão!)
Desde muito criança, tais acontecimentos (passeatas, foguetórios) são comuns por aqui, Varjota, como em várias cidades do interior do País, quase sempre voltadas a vitórias de times do eixo econômico do país: Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Vasco, entre outros. Na última quinta, não! Festejar Ceará ou Fortaleza por aqui não é uma invenção de ontem, claro, mas suas torcidas são crescentes a cada dia, firmando os dois clubes como o primeiro time de tantos, deixando um pouco de lado a paixão por times doutras regiões, quando não, ao menos compartilhando-a.
É + que streaming. É arte, cultura e história.
Sou um exemplo disso, descobri a paixão pelo futebol, ainda criança, no final dos anos 1990, e tomei como time de coração o Vasco da Gama. Em Varjota, na época, tudo o que eu tinha pra saber de futebol era a TV num único programa sobre esporte em canal aberto que havia, feito quase que exclusivamente para clubes do Sudeste/Sul. Por linhas tortas foi por ali que descobri o Fortaleza Esporte Clube, quando me chamou a atenção um clube cearense nas quartas de final da Copa do Brasil de 2001 (pena que saímos contra a Ponte Preta, do então jovem Washington, o mais tarde "Coração Valente").
Fui saber mais sobre, e me apaixonei pelo Fortaleza e pelo futebol daqui, acompanhando tudo pelo rádio. Experiência que nunca mais abandonei. Um ano depois, festejava o acesso do Leão do Pici para a primeira divisão, e vi que minha paixão pelo futebol podia, sim, estar no estado que moro.
Por esse prisma pude enxergar o mundo ali mais perto de mim. No ínterim de duas décadas, assisti muitos momentos: a excelente fase do Fortaleza entre 2002 a 2006, a alavancada do Ceará a partir de 2009, a ascensão novamente do Fortaleza a partir de 2017, e hoje, os dois há três anos juntos na Série A, sendo campeões regionais, e disputando campeonatos internacionais. Todo esse sucesso, há várias motivos, muitos já debatidos, mas queria me deter noutro ponto, motivo inicial deste texto: a chegada desses clubes de forma mais profunda como paixão nos interiores de seu lugar.
Assisto no Brasil, em várias searas, um processo de descentralidades de poder, principalmente no que diz respeito a lugar de fala, um reflexo do mundo conectado que ganhamos nas últimas décadas. O futebol não estaria inerte a esse processo.
Ainda assistimos (e, por vezes, compactuamos) com uma ideia de Nordeste alicerçado num saudosismo tóxico, que reflete ideias de passado, atraso, desleixo, que datam imagens e atitudes de meados do século XIX e começo de século XX, que, passados 100 anos, pouco dizem desse lugar. Os interiores do Brasil, principalmente no Nordeste, sofreram uma verdadeira revolução social de costumes nas últimas três décadas: a diminuição das distâncias; a interiorização do ensino, desde o médio e técnico ao superior; e a massificação dos meios de comunicação, principalmente a internet; possibilitaram a tantos dos rincões do Brasil a chance de permanência nos seus lugares, e, por conseguinte, a possibilidade de leitura de mundo do seu povo por ele mesmo, e do lugar por ele mesmo.
Enxergo o crescimento das torcidas de Ceará e Fortaleza, aqui em Varjota e em outras cidades do estado e até noutros lugares do País, pralém de seus sucessos esportivos, como reflexo de todo o processo social e antropológico de descentralidades que vivemos e promovemos. O futebol como manifestação cultural da sociedade diante disso, nem se quisesse, ficaria de fora. Continuemos acompanhando.