Ato golpista em Fortaleza é dominado por fake news contra Lula e urnas eletrônicas

Manifestantes que pedem anulação da eleição de Lula (PT) citam acusações já desmentidas pela campanha petista ou pela Justiça Eleitoral

17:34 | Nov. 02, 2022

Por: Carlos Mazza
Em ato golpista, apoiadores de Bolsonaro em Fortaleza pedem intervenção federal após vitória de Lula (foto: Aurélio Alves/O Povo)

Vestidos de verde-amarelo e segurando bandeiras do Brasil, dois homens conversam em frente à 10ª Região Militar do Exército, no Centro de Fortaleza. “Lula já falou que vai tomar a poupança e criar uma taxa do pix”, grita um deles, indignado. “Eu vi que ele se reuniu com o presidente da Argentina para eles unirem os dois bancos centrais em um só”, rebate o outro. E insiste: “Você já pensou nisso, ganhar o seu salário em pesos?”.

O diálogo, composto apenas por informações falsas, foi apenas um de vários semelhantes testemunhados pelo O POVO nesta quarta-feira, 2, durante ato golpista em defesa do presidente Jair Bolsonaro (PL) realizado na Capital cearense. Apesar de negarem caráter golpista, os manifestantes pediam uma “intervenção federal” das Forças Armadas que anule as eleições deste ano e determine a prisão do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O próprio local escolhido para o ato, em frente ao principal quartel do Exército no Ceará, reforça a pretensão militarista do movimento. Desde as primeiras horas da manhã, centenas de bolsonaristas ocuparam as vias em frente à unidade, fechando a rua Dr. João Moreira, que dá acesso ao Passeio Público, e parte das faixas da avenida Alberto Nepomuceno. Não há previsão de encerramento dos protestos, que prometem virar a noite no local.

“Nós suplicamos que as Forças Armadas não deixem o Brasil cair no comunismo”, repetia emocionada, em uma caixa de som, uma manifestante. Além dos pedidos de “intervenção federal”, a maioria das faixas do ato atacavam, além do presidente eleito, os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), especialmente Alexandre de Moraes.

Desinformação eleitoral

Ao chegar no evento, uma outra faixa, que trazia a imagem dos comandantes das Forças Armadas seguida da frase “liberdade não se ganha, se toma”, provocou diversos aplausos de manifestantes. “Eu autorizo, eu autorizo”, repetiam em coro os militantes. Vários cartazes, gritos de guerra e discursos questionavam ainda o sistema eleitoral brasileiro e as urnas eletrônicas, ainda que boa parte deles fossem baseados em informações falsas.

“O TSE tem um algoritmo que aumentou votos do Lula”, disse uma manifestante. “Eu vi a servidora do TSE que fiscalizava as eleições fazendo L”, afirmava outra, em informações já desmentidas pela Justiça Eleitoral. No evento, diversos bolsonaristas convocaram amigos em grupos de WhatsApp e transmissões ao vivo. Apesar de algumas pessoas terem distribuído água e comida no protesto, militantes apontavam caráter “espontâneo” do ato.

“Esse evento aqui foi organizado espontaneamente pelo povo. Não tem nenhuma liderança, a liderança é o povo. Foi espontâneo, tanto é que temos manifestações em vários lugares. É uma manifestação que segue o artigo 5º da Constituição, que nos garante a liberdade de reclamar contra o que está errado, como foi o caso dessa eleição estranha”, diz o empresário Alex Ceará, que foi candidato a deputado federal pelo PL neste ano.

“Você vê aí que teve cidades, de alguns estados aí, que tem 300 e poucos, 400 votos para o outro lado, e zero para o Bolsonaro. Isso aí é impossível. Você não precisa ser matemático ou estatístico, até uma pessoa normal já percebe que tem alguma coisa errada”, destaca. “Entre muitas outras situações, a exemplo de alguns ministros do STF que estão rasgando a Constituição, tratando ela com ilegalidade, com prisões arbitrárias”.

A informação do militante sobre os votos, no entanto, não procede. Segundo o TSE, nenhum município do Brasil registrou 100% de votação em qualquer um dos candidatos no 2º turno. O município com maior predominância de votos a Lula foi Guaribas, no Piauí, que teve 93,9% de votos para o petista. Já Nova Pádua, no Rio Grande do Sul, acabou sendo a cidade mais bolsonarista do País, com 89% de votos para o atual presidente.

"Poder Moderador" e "intervenção federal"

Apesar disso, Alex Ceará afirma que o movimento não é golpista nem pretende buscar uma intervenção militar. "As Forças Armadas têm um Poder Moderador. Não sou eu que estou dizendo isso, está lá na Constituição. E é isso que nós estamos pedindo, chamando esse Poder Moderador para consertar tudo o que houve de errado nesta eleição”, diz.

Apesar de muito repetida em cartazes e gritos de guerra do ato, a tese, no entanto, vem sendo rejeitada por ministros do Supremo e até por integrantes do governo. Em 2020, o então presidente do STF, Dias Toffoli, destacou que o artigo 142 da Carta Magna, frequentemente citado por bolsonaristas para defender uma intervenção militar, trata apenas das atribuições das Forças Armadas e não prevê qualquer "Poder Moderador". "O guardião da Constituição é o STF", resume.

Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Direito Constitucional, a jurista Juliana Diniz também destaca que “não existe hipótese normativa” de intervenção federal. “Como braço do Estado, as Forças Armadas estão sob o comando do chefe do Executivo e não têm, em qualquer circunstância, qualquer ingerência sobre o funcionamento e a autonomia dos demais poderes”, destaca.

“Nossa Constituição subordina as Forças Armadas ao governo civil e esse é um ponto estrutural muito importante no nosso desenho institucional. Na equação de equilíbrio entre os poderes, na dinâmica dos pesos e contrapesos, as Forças Armadas não têm qualquer participação”, afirma ainda.

A especialista destaca ainda que a “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO), esta sim uma disposição prevista no texto constitucional, é “sempre voltada à contenção de instabilidades pontuais, por um tempo limitado e definido” e deve ocorrer “sob o comando, provocação e controle do governo civil”. “De acordo com a lei, a GLO não pode ser utilizada para interferir no funcionamento de um dos três poderes republicanos”.