"Trabalhar em casa é uma jornada contínua", diz a antropóloga Izabel Accioly
Quarta entrevistada na série do O POVO que conta histórias de quem segue respeitando a quarentena, Izabel Accioly compartilha seu trabalho, seus anseios e sua rotina com um filho adolescente
18:08 | Fev. 16, 2021
Quase um ano após o início das medidas de distanciamento e isolamento social no Brasil em decorrência da Covid-19, pode se considerar complicada a missão de encontrar quem ainda respeita a quarentena à risca. Na margem do possível, Izabel Accioly, de 32 anos, é uma dessas pessoas. Em entrevista exclusiva, a antropóloga e professora relata seu cotidiano em quarentena com o filho de 15 anos. Ela é a quarta entrevistada da série do O POVO que objetiva contar histórias de quem segue respeitando as medidas de enfrentamento à Covid-19.
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Mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Izabel defendeu sua dissertação em maio de 2020, semanas após a chegada da quarentena no cotidiano cearense. Ela relata que, à época, estava abalada emocionalmente, em parte devido à nova realidade que o coronavírus trouxe consigo, apesar de hoje estar mais tranquila e menos ansiosa.
O novo normal
Com poucas oportunidades de emprego formal em sua área, Izabel se viu sem emprego e sem renda. “Fui contemplada com o auxílio emergencial, mas não supria todas as necessidades minhas e do meu filho. Então, eu tive que começar a trabalhar muito mais do que eu trabalhava antes, né?”, conta.
Percebendo a tendência de aulas virtuais durante aquele período, a antropóloga aproveitou a oportunidade e começou a ofertar cursos à distância sobre temas diversos, incluindo negritude e feminismo negro. O primeiro deles, “Relações raciais e branquitude no Brasil”, teve quase 10 turmas ao longo de 2020. Izabel diz que a principal vantagem dos cursos online é poder atingir mais pessoas, de diferentes lugares. Isso vem com um custo: a saudade que a professora sente das salas de aulas presenciais é grande.
Segundo Izabel, trabalhar em casa significa trabalhar mais. Sua rotina foi intensificada, porque ela precisou trabalhar bastante para sustentar sua família. “E trabalhar em casa não é mais viver uma rotina, uma jornada dupla de trabalho, né? É uma jornada contínua de trabalho. A gente não sabe onde o trabalho doméstico começa e onde o trabalho termina”, avalia.
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Apesar disso, ela costuma seguir uma rotina semanal: de segunda a sexta, se dedica à sua pesquisa, enquanto as noites e os fins de semanas são dedicados aos cursos. No meio do caminho, Izabel cuida de si, de sua casa e de seu filho adolescente, Vinícius, que, ela conta, não resistiu às adaptações. “Meu filho está naquela fase da vida de adolescente que gosta de ficar em casa, de ver anime. Então ele não pressiona para sair. Isso me ajuda”, conta.
Por que quarentenar?
Para Izabel, que é diabética o respeito ao distanciamento possui também uma dimensão de autocuidado, “uma questão de vida ou morte”. Mesmo sentindo “muita falta de sair, de ir à praia, de ver meus amigos, de tomar uma cerveja na rua”, ela prefere não se arriscar e só sai de casa quando realmente precisa. Quando não conseguem pedir entrega em domicílio, Izabel e filho vestem sua principal armadura, a máscara cirúrgica, e separam um horário menos movimentado para visitar estabelecimentos.
Izabel diz que a maior dificuldade em estar isolada por tanto tempo é controlar o emocional. A falta de esperança geralmente vem dos noticiários, que ela reconhece como causadores de ansiedade, mas que continua consumindo para estar informada. Perguntada se já cogitou desistir de seguir em quarentena, ela responde: “Eu não posso desistir porque eu preciso viver, eu tenho um filho para criar. Eu preciso estar bem para ele estar bem. Então é por ele, né? É por mim, mas é por ele também”.
A antropóloga faz aniversário no período de Carnaval e neste ano não poderá continuar com o costume de reunir amigos na Praça da Gentilândia, no bairro Benfica. Ela conta que seu respeito à quarentena já até a levou a discutir com familiares. A mãe de Izabel estava hospedada temporariamente na sua casa durante o Ano Novo, quando alguns irmãos visitaram e ela percebeu que eles não tinham a mesma percepção que ela quanto às medidas de segurança.
Quanto aos amigos, a fortalezense não vê a maioria de suas amizades há meses, apesar de ter encontrado duas amigas de confiança em momentos distintos. No início da quarentena, aconteciam encontros virtuais, por videochamadas, mas a prática foi desaparecendo com o tempo e com a exaustão de Izabel em relação às telas de computador e celular.
Os eletrônicos, inclusive, também são companheiros fiéis do isolamento da professora. Para além dos cursos, ela teve que aumentar sua presença nas redes sociais, mínima pré-quarentena, para manter laços com conhecidos, mas restringiu seu uso do aplicativo WhatsApp. “Se você me escreve num horário em que eu não posso atender, automaticamente segue uma mensagem dizendo que eu não estou disponível naquele momento. E algumas pessoas ficaram até um pouco chateadas com a minha não presença”, desabafa.
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Quem pode respeitar a quarentena?
Mesmo tendo atravessado certos percalços para conseguir se manter durante a pandemia, Izabel reconhece ser uma de poucos que tiveram a oportunidade de continuar trabalhando em casa. Ela pontua o emprego doméstico como uma das áreas cujos trabalhadores estão vulneráveis ao coronavírus devido ao requisito do trabalho presencial.
“A primeira vítima aqui no Brasil foi uma mulher negra empregada doméstica. Essa profissão é uma das que mais tem resquícios coloniais no nosso País de forte passado escravocrata”, afirma. Ela pondera: “Seria realmente muito interessante que todo mundo tivesse esse direito garantido a preservar a própria saúde”.
Izabel critica pessoas que compreendem a urgência da pandemia, mas saem de casa mesmo assim. “Vejo essas pessoas que, no discurso, continuam apoiando a ciência, achando que a vacina é importante, que máscara é importante no discurso, mas que, na prática, muitas vezes furam a quarentena, saem sem uma razão forte para sair”, denuncia.
Ela pede paciência e responsabilidade às pessoas, “porque essa irresponsabilidade pode ter um preço muito, muito, muito alto. Aliás, inestimável. Qual é o preço da vida humana? É a sua saidinha para praia, é a festinha que você faz com seus amigos? Será que isso vale a vida de uma pessoa?”