Hidroxicloroquina segue não sendo recomendada na rede pública de saúde; entenda o uso

No Ceará, a Secretaria de Saúde protocola o uso desde meados de maio e "não recomenda a prescrição rotineira de antimaláricos para pacientes ambulatoriais e hospitalizados com diagnóstico suspeito ou confirmados" da Covid-19, segundo parecer técnico mais recente

17:18 | Dez. 28, 2020

Por: Redação O POVO
Presidente Jair Bolsonaro expõe caixa de cloroquina. (foto: MATEUS BONOMI/AGIF/AE)

O uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 não tem comprovações científicas, entretanto, segue sendo recomendado pelo Ministério da Saúde (MS). No Ceará, a Secretaria de Saúde do Estado (Sesa) protocola o uso desde meados de maio e "não recomenda a prescrição rotineira de antimaláricos para pacientes ambulatoriais e hospitalizados com diagnóstico suspeito ou confirmados" da Covid-19, segundo parecer técnico mais recente do último dia 30 de maio.

O medicamento, indicado no tratamento de doenças como malária, artrite reumatoide e lúpus, é amplamente divulgado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e foi utilizado por ele em seu tratamento como uma possível cura para a doença. O uso do medicamento segue como não recomendado pela Sesa, mas informa que "não cabe ao Estado constranger a decisão médica quanto à referida prescrição".

"Os profissionais de saúde têm como prerrogativa, segundo o julgamento clínico, a perícia profissional e a atitude ética, para tomada de decisões que podem prevalecer orientações e diretrizes gerais, como a da presente nota técnica, cabendo aos órgãos fiscalizadores e regulatórios o julgamento e as providências éticas, legais e administrativas que eventualmente se façam necessárias caso a caso", pontua a secretaria.

O infectologista Roberto da Justa, do Coletivo Rebento, concorda com a decisão da pasta. "Todas as organizações científicas nacionais e internacionais, como a OMS [Organização Mundial da Saúde] e a Sociedade Brasileira de Infectologia não recomendam sequer o uso para sintomáticos. É uma anomalia por parte do Ministério da Saúde que causa até constrangimento", reverbera.

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Atuante no Hospital São José, o médico informa que o medicamento não é mais utilizado na unidade. Porém, notícias falsas sobre a aplicação da substância e as divergências de orientações entre as pastas dificulta o trabalho dos especialistas. "Claro que devemos respeitar a autonomia do paciente, por mais que a gente afirme dos riscos, temos que respeitar. Mas isso gera um desgaste desnecessário na linha de frente", conversa Roberto. "Ao invés de trabalharmos com uma linha central, temos que explicar ao paciente que não há essa comprovação. É cansativo."

A Sesa já chegou a recomendar no dia 16 de maio de 2020 o uso da substância no estágio 3 de internação hospitalar pela Covid-19. A prescrição, entretanto, só seria feita diante de decisões do médico com o paciente e familiares, além de não ser recomendada para uso profilático - ou seja, com o intuito de evitar a Covid-19.

Tal orientação foi implementada apenas como medida emergencial e de forma temporária, segundo o médico infectologista Keny Colares, consultor da Escola de Saúde Pública do Ceará, que atua em parceria com a Sesa. "Ainda em maio foi retirada a orientação do uso emergencial [da Cloroquina] devido a quantidade de artigos científicos que mostravam que [o medicamento] não tinha benefícios" no tratamento da Covid-19, explicou. 

O médico frisa ainda que desde então o uso da Cloroquina e derivados no tratamento de pacientes com Covid-19, independente do grau de infecção, não é recomendado na rede pública de saúde do Ceará. "Nós sabemos que apesar da recomendação formal, o medicamento segue sendo utilizado, em especial nas rede privada de saúde", completa. 

Keny explica que diante da ausência de uma remédio próprio para determinada doença, o protocolo de atendimento para qualquer paciente ambulatorial, ou seja, com quadros leves e assintomáticos, não envolve o receituário de qualquer medicamentos. No máximo, em casos mais intensos, a prescrição de medicamentos específicos para o alivio de eventuais sintomas como analgésicos para dor e antitérmicos para febre. "O principal nisso tudo é o olhar do profissional de saúde, é o acompanhamento, ficar observando para ver se o quadro daquele paciente irá apresentar chances de um agravamento ou não, já que os casos graves correspondem a cerca de 20% das infecções", comenta. 

Nos países desenvolvidos ninguém tá discutindo cloroquina, ninguém tá discutindo ivermectina. Isso é algo que não tá mais em debate, mas aqui existe uma mistura com a questão ideológica”, criticou o médico diante do uso politico da cloroquina feito por Bolsonaro e apoiadores. Keny afirma ainda que a prioridade no momento deveria ser a vacinação dos brasileiros, mas que a polarização política acaba atrapalhando o enfrentamento da pandemia no País. 

O especialista reprovou ainda o uso por conta própria do medicamento ou contrariando as recomendações das entidades de saúde. "Tem o mal físico que o remédio pode causar, mas tem também o mal comportamental, por achar que tomando o remédio as pessoas param de tomar certos cuidados", comentou sobre o agravamento das taxas de transmissão da Covid-19. 

Além do uso da Cloroquina, Keny pontua que o uso indiscriminado de corticoides também pode ser outro fator de risco. "São medicamentos que lentificam o sistema imune do organismo e podem facilitar o agravamento de infecções virais", esclareceu. Segundo ele, o protocolo, caso o paciente chegue ao atendimento médico pedindo tais medicações é de que o profissional de saúde realize um momento de orientação e conscientização individual com base nas recomendações das entidades de saúde.  

Mas se cloroquina não cura, por que existem curados?

Mesmo sem comprovações científicas, uma das suposições que permeiam o uso da substância é sua cura, como amplamente divulgadas pelo próprio presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido). O Executivo veio sendo fortemente criticado pela condução da pandemia no País, com declarações contrárias aos protocolos de saúde estabelecidos.

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O infectologista relembra que a maioria dos casos do novo coronavírus é leve. "A tendência é que os casos evoluam para a cura, independentemente da medicação, quando conduzidos de forma correta", cita. Ou seja, a suposta cura da cloroquina nada mais seria do que um efeito placebo: uma possível melhora da doença responsabilizada por medicamentos que, na verdade, não desenvolveram a cura em momento algum.

"Existem estratégias como o uso de corticoides, para pacientes graves, o uso de anticoagulantes. Isso diminui a mortalidade. E ao utilizar essas intervenções, validadas por estudos, é que alcançamos a redução dos casos", ressalta Colares.