"Já estamos fabricando a próxima pandemia", alerta médico, que destaca papel da degradação ambiental na pandemia de Covid-19
Em entrevista ao O POVO, o professor da USP e ex-presidente da Anvisa, Gonzalo Vecina, destaca como os hábitos de destruição humanos viabilizam epidemias cada vez mais constantes
12:48 | Ago. 14, 2020
O planeta Terra vive uma emergência climática há décadas, consequência dos hábitos poluidores e extrativistas do ser humano. Ainda que questões como o aquecimento global e poluição sempre sejam lembrados como um risco para a presença humana na Terra, foi preciso uma pandemia para demonstrar a gravidade do problema.
De acordo com o médico sanitarista Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a humanidade precisa se preparar para as próximas epidemias que virão. “Já estamos fabricando a próxima pandemia”, alerta em entrevista ao O POVO. Confira:
O POVO - Em março deste ano, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) afirmou que o surto de coronavírus é reflexo da degradação ambiental. Como o senhor analisa essa afirmação?
Gonzalo Vecina - Totalmente verdadeira. Temos que olhar para dois fenômenos muito interessantes. Para nos alimentarmos, nós temos que agredir o ambiente de duas maneiras. Uma delas é que criamos animais para o consumo humano. Algum tempo atrás tivemos um episódio de gripe suína, depois de gripe aviária. São vírus que viviam no porco e no frango e saltaram para o homem.
Nós estamos muito próximos, fisicamente, desses animais, criando, matando e processando a carne deles. Durante todo esse processo, os vírus e outros microorganismos que habitam naturalmente esses animais podem saltar para o homem. [Essas doenças] são fruto desse cartel de animais que nós criamos para a nossa alimentação.
Outro tipo de agressão é que nós estamos, para plantar e criar animais, invadindo cada vez mais a vida normal do planeta. E isso faz com que a agressão ao meio ambiente seja muito violeta. Veja o que aconteceu na China: um país um pouco maior que o Brasil, mas tem um bilhão e meio de habitantes. É um país em processo acelerado de urbanização, e por isso há uma pressão ecológica muito grande sobre os animais que ainda vivem na china, entre os quais estão o morcego e o pangolim.
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O vírus, sentindo-se com espaço vital cada vez mais diminuído, começou a tentar outras oportunidades para continuar existindo. Saltou do morcego para o pangolim. Pangolim é uma carne muito querida pelo sudeste asiático, está inclusive em vias de extinção. Saltou para o homem naqueles locais onde os pangolins são mortos e sua carne é preparada. Saltou e fez essa desgraça. Então essa epidemia já é fruto da agressão ao meio ambiente.
OP - Aqui no Brasil, estamos vivenciando muito intensamente a questão das queimadas na Amazônia. O senhor acredita que essa degradação também põe o Brasil em risco de ser o ponto inicial de outra pandemia?
GV - Nós estamos fazendo isso com a Amazônia. A Amazônia tem muitas formas de vidas outras, muitos vírus, que nós nem conhecemos. Agora, invadir a selva é um caminho certo para a gente conseguir achar um desses microorganismos, que vão procurar o homem para continuar existindo.
É, por exemplo, muito sugestiva a questão da febre amarela. Ela existe na selva, mas quando a gente invade a selva, encontramos a febre amarela. Se deixasse a febre amarela lá, os macacos lá, isso não aconteceria. É deixar a floresta com as suas coisas e a gente com as nossas. E quando a gente precisar entrar na floresta, por qualquer razão, é tomar os devidos cuidados. Então, nós já estamos fabricando a próxima pandemia, graças a nossa capacidade de destruição ao meio ambiente.
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OP - Em relação às queimadas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) chegou a afirmar que a “história de que a Amazônia arde em fogo é mentira”. Como essa negativa dos governos, em geral, coloca a população em risco?
GV - O homem para existir teve que ocupar espaços na natureza. Se a gente pensar a Europa já foi uma grande floresta. Hoje não é mais. Eles destruíram completamente o meio ambiente deles. Só que a Terra tem um certo estado de equilíbrio que depende da existência de área verde. Se destruirmos a área verde como fizeram os europeus, nós estaríamos caminhando para a destruição do mundo.
Isso nós podemos ou fazer conscientemente ou não perceber que estamos fazendo. É uma forma idiota de se movimentar na Terra. O que o Bolsonaro tá falando é que nós precisamos explorar a floresta, derrubar a mata e plantar e criar gado no lugar. Ele nega a possibilidade de que, ao fazer isso, nós destruímos de tal maneira o meio ambiente de forma que nem mais isso possa ser feito [depois]. É uma forma idiota de ver o mundo. Só ver o que está alcance ao seu nariz e não ver mais à frente.
A sociedade brasileira concorda com isso? Vamos destruir a selva amazônica e transformar esse pedaço do mundo em um deserto? Essa é a questão. Então, isso não é um problema só do Bolsonaro. É um problema de todos nós, nós que temos que tomar essa decisão.
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OP - Se essa próxima pandemia começasse no Brasil, quais poderiam ser os impactos disso para o País?
GV - Seria muito ruim. Porque, veja, nós tivemos um belo de um tempo para nos preparar e não usamos muito bem esse tempo. Essa pandemia começou na China e demorou três meses para chegar aqui. Se ela começasse aqui, ela não ia demorar nada. A China hoje é um país que tem muitos equipamentos e vigilância ambiental. A vigilância ambiental para eles é uma questão muito séria, porque é um país muito povoado.
E esses laboratórios, essa capacidade de identificar e acompanhar microorganismos no Brasil é muito pequena. Essa é uma das lições que fica dessa pandemia: nós temos que melhorar a nossa capacidade de fazer vigilância epidemiológica, identificar novos patógenos e estudar esses patógenos, e criar alternativas para conseguir evitar outras epidemias. Seria um desastre muito grande.
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OP - O que precisamos fazer para evitar ou nos protegermos dessas futuras pandemias?
GV - Tem duas coisas. Uma coisa é que você tem que se conscientizar de que essas atitudes, destino final de esgoto, lixões, derrubar floresta, por fogo na floresta; isso diminui a longo prazo a licença que o homem tem para viver na terra. Temos que garantir que há consciência disso.
Entendendo isso, temos que entender que existem formas de conviver economicamente viáveis com o meio ambiente. Então, tem como fazer extração ou outras coisas que se utilizem da floresta que não a destruam. A gente precisa aprender a fazer isso de forma mais sustentável. A palavra chave é sustentabilidade para garantir a perenidade. É esse o caminho que temos que perseguir. Isso é um grande conjunto.
Outro grande conjunto está voltado para criar uma estrutura de vigilância epidemiológica que melhore nossa relação com o meio ambiente. Um sistema que identifique novos patógenos, que esteja continuamente os estudando, e nos preparando para a possibilidade de eles se tornarem em uma epidemia.
Seminário
O professor também participará de seminário promovido pelo Sindicato dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Estado do Ceará (Sindessec) e pela apoio da Federação Nacional dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde (Fenaess). O evento será totalmente online, nos dias 18 e 19 de agosto, com palestrantes discutindo soluções em saúde, empreendedorismo, desenvolvimento de vacinas e medicamentos de combate ao coronavírus e equilíbrio emocional.
Serviço
O Futuro da Saúde – Ciência e Tecnologia como Estratégias de Desenvolvimento
Quando: dias 18 e 19 de agosto
Onde: transmissão gratuita pelo Youtube do Sindessec
Mais informações: inscrições gratuitas e programação completa no site: http://seminariofuturodasaude.com.br/