Mulheres são maioria entre profissionais de saúde infectados com a Covid-19

Segundo dados do Coren, as profissionais ocupam os principais cargos afetados pela doença, como enfermeiras e auxiliares e técnicas de enfermagem

16:37 | Jun. 25, 2020

Por: Ismia Kariny
Southampton em 7 de maio de 2020 Uma foto da apostila recebida do Hospital Universitário de Southampton mostra um membro da equipe posando com uma obra de arte do artista de rua Banksy chamada "Game Changer", mostrando um garoto brincando com um brinquedo de super-herói de enfermeira com figuras de Batman e Homem-Aranha descartados em um como uma homenagem aos funcionários do NHS que continuam trabalhando durante a pandemia do COVID-19, em uma parede do Hospital Universitário de Southampton, sul da Inglaterra (foto: Stuart MARTIN / AFP / UNIVERSITY HOSPITAL SOUTHAMPTON)

Mulheres são a maioria dos profissionais de saúde infectados pelo novo coronavírus no Ceará, segundo dados da plataforma IntegraSUS. Até a tarde da quarta-feira, 24, o sistema contabilizava 7.853 casos confirmados de Covid-19 entre as mulheres que trabalham na área da saúde. Os homens registravam 3.053.

Também em dados da plataforma IntegraSUS, os casos confirmados e óbitos por Covid-19 são maiores entre os auxiliares e técnicos de enfermagem. Eles correspondem a 30,76% (3.206 do total de 10.906) dos casos e sete das 21 mortes de profissionais da saúde. Em seguida, há um número igual de óbitos entre os médicos (7) e mais casos de enfermeiros infectados (1.582).

O número maior de profissionais mulheres infectadas com a Covid-19 coincide com dados do Conselho Regional de Enfermagem do Ceará (Coren) que aponta o grupo como a principal força de trabalho nas áreas mais afetadas pela doença. As mulheres ocupam em massa os cargos de enfermeiras (87.6%), auxiliares de enfermagem (90.7%) e técnicas de enfermagem (87.6%).

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De acordo com o Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Saúde do Estado do Ceará (Sindsaúde), as profissionais dessas áreas acabam sendo mais expostas aos riscos de infecção, por realizarem serviços de contato direto com os fluidos dos pacientes. Desde o banho e o asseio, até a troca de fraldas, aplicação de aerossol, medicações, entre outras atividades.

Profissionais são mais vulneráveis devido ao ambiente de exposição e alta contaminação

Para o médico do Sistema Único de Saúde (SUS), Paulo Roberto, mesmo com todos os cuidados, que partem da gestão dos hospitais, a própria natureza do trabalho dificulta a redução do risco de contágio entre os profissionais. “Ele está no olho do furacão, na unidade de saúde, que é onde os pacientes mais graves e com altas cargas virais convergem. Então, ele acaba ficando mais exposto”, comenta o médico, que é também membro do Coletivo Rebento.

O infectologista Keny Colares, médico do Hospital São José e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Virologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), ressalta que a vulnerabilidade dos profissionais é maior diante do risco de infecção nos ambientes hospitalares. “Em todo o mundo, eles acabam sendo mais contaminados. Isso não quer dizer que o profissional vá ter uma letalidade maior, mas vão ser mais infectados porque estão ali todos os dias trabalhando com os pacientes”, pontua.

Para a obstetra Liduína Rocha, integrante do Coletivo Rebento, nesses mesmos espaços de cuidado da saúde, existem grupos que estão tão expostos quanto os profissionais da área, mas que ainda seguem invisíveis. De acordo com a médica, há uma hierarquia econômica, “de privilégios”, que não garante a igualdade e qualidade de assistência para os demais trabalhadores - como copeiros, funcionários de limpeza, equipe da segurança, entre outros - que também ocupam esses espaços.

“Alguns de nós tem mais acesso aos equipamentos de proteção individual, ou tem uma história de vida e condição orgânica que torna possível tratar dessas comorbidades, e nos coloca em lugares diferenciados”, salienta. Conforme a obstetra Liduína Rocha, os grupos invisíveis são profissionais que ocupam cargos de remuneração menor, com alta carga de trabalho, onde há uma maioria de mulheres, e também grupos étnicos minoritários.

Dessa forma, em função da sua própria condição social, e com a dificuldade de acesso aos equipamentos de proteção individual e de assistência no tratamento de comorbidades, esse grupos invisíveis se tornam ainda mais vulneráveis. “Se eles não estão mais expostos, eles estão mais vulneráveis a essa exposição. Então, me parece bastante razoável a gente pensar que existe uma vulnerabilidade que responde por raça, gênero e classe”, sustenta a obstetra.

Profissionais do nível médio são as principais vítimas

Nesse momento de pandemia, os profissionais da atenção primária também carecem de melhores condições de trabalho, conforme relata o diretor do SindSaúde, Quintino Neto. Ele relata que os profissionais do nível médio estão entre aqueles mais acometidos pela Covid-19.

“Aqui destaco a questão dos próprios agentes, que estão em nível acentuado de infecção por estarem fazendo trabalhos e não serem bem assistidos quando se trata de EPIs. Por conta disso temos aí contabilizado um número de nove agentes infectados”, ressalta. O diretor jurídico pontua que os dados colhidos pelo Sindicato divergem daqueles registrados no IntegraSUS.

Conforme o Sindsaúde, morreram 15 trabalhadores do sexo feminino e seis do sexo masculino: 11 técnicos e auxiliares em enfermagem (oito mulheres e três homens); uma auxiliar em saúde bucal; e ainda nove agentes comunitários de saúde (ACS) e de combate a Endemias (ACE) - seis mulheres e três homens. Entre as ACS, uma era indígena. Também morreram um maqueiro, uma auxiliar de serviços gerais, e um controlista.

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Já o IntegraSUS, registra ao todo: sete mortes entre médicos; sete mortes entre técnicos ou auxiliares de enfermagem; três óbitos de enfermeiros; e igualmente um caso de morte entre profissionais da biotecnologia, condutores de ambulância, agentes de saúde pública e cirurgiões-dentistas.

Profissionais mulheres são as mais infectadas, mas homens continuam sendo as principais vítimas durante a pandemia

Se observado o número de óbitos decorrentes da Covid-19, os homens continuam sendo o grupo que mais morre pela infecção, mesmo entre os servidores da saúde. De acordo com a plataforma IntegraSUS, foram nove mortes entre as mulheres, e 12 entre os homens.

Quando considerado todos os óbitos do sexo masculino, que foram infectadas com o coronavírus no Ceará, o número se eleva para 3.195. O valor supera em 42.8% o número de óbitos (2.397) entre as mulheres no Estado. Essa distinção levantou o debate sobre quais fatores poderiam contribuir para o agravamento da doença entre os homens, embora as mulheres sejam o grupo mais infectado no Ceará.

A tendência também foi observada pela infectologista Melissa Soares, que atua no Hospital São José (HSJ) e no Hospital São Camilo, em Fortaleza. “Em um levantamento recente que a gente fez no São Camilo, a gente viu que as mulheres vão mais para casa. É quase como se estivéssemos internando mais homens”, conta ela.

De acordo com a infectologista, no caso das mulheres, fatores hormonais podem contribuir para uma melhor resposta à infecção. Isso seria possível porque o estrogênio, por exemplo, as tornam menos propensas a desenvolver hipertensão ou doenças cardiovasculares e coronarianas, que são algumas das condições que agravam a Covid-19. Essa “medida protetiva”, no entanto, se perde conforme as mulheres avançam na idade, e principalmente após a menopausa.

“A gente tem percebido que os pacientes com diabetes ou hipertensão se internam e tem quadros mais graves. Até mesmo porque eles expressam mais o ACE2, que são receptores, ou enzimas conversoras, onde o vírus se liga”, detalha Melissa. Segundo a infectologista, os homens já chegam às unidades de saúde com mais fatores de risco do que as mulheres.

Essa situação também pode ser explicada, considerando que os homens possuem mais destes receptores de entrada do vírus, sobretudo na área dos testículos, esclarece Melissa. “Os homens acabaram ficando mais expostos. Talvez eles até venham apresentar sequelas no futuro, como a infertilidade”, pondera a infectologista. Ela acrescenta, no entanto, que ainda é necessário estudos para avaliar as eventuais sequelas da infecção.

Além de fatores comportamentais, que possam tornar os homens mais suscetíveis a comorbidades, o infectologista Keny Colares destaca que, desde o início da epidemia na China, os pesquisadores têm avaliado a participação de fatores biológicos, que possam explicar a possibilidade maior de agravamento da Covid-19 entre o grupo masculino e os mais idosos.

A influência dos hormônios femininos na resposta à infecção e a facilidade de multiplicação do vírus no testículo, são alguns dos fatores citados por Melissa, que foram também reforçados pelo infectologista. “A terceira coisa, é que aparentemente o vírus entra na célula do ser humano por alguns receptores que tem na superfície dessas células, onde o vírus se encaixa. E parece que há uma distribuição diferenciada desses receptores entre jovens e idosos, e homens e mulheres”, esclarece Keny.